sábado, 15 de março de 2008

Lixo é uma questão de cultura?

Certa vez, quando acabava de me mudar para Brasília, há uns bons oito anos, ainda ignorando a distância a pé entre o Conjunto Nacional e o Setor de TV Sul, resolvi arriscar uma caminhada. Munida de um providencial coco gelado, enquanto sorvia o líquido, fui atravessando tortuosas trilhas de areia vermelha que cortavam o coração da capital. No fim, nem tão má fora a caminhada, apesar de não muito cômoda. E não pelo caminho irregular, mas porque até chegar ao meu destino não consegui me desfazer da casca da fruta... Ingênua fui em pensar que poderia encontrar uma lata de lixo no meio do cerrado. Afinal de contas, por que alguém teria a brilhante idéia de espalhar lixeiras pelo meu caminho, se o projeto de Lucio Costa não previa que alguém se atrevesse a andar por ali? Certamente, se a consciência não me pesasse, seguiria o exemplo de outros transeuntes e faria meu depósito do fruto seco ali mesmo, no meio do areão.

O que espanta é, ao andar pelas ruas de Tóquio, onde há tempos não existem espaços para trilhas de terra, acontecer algo semelhante. Felizmente, os cocos verdes não estão disponíveis na cidade, porque se estivessem, e precisássemos nos desfazer da casca em plena caminhada, não encontraríamos lixeiras para jogá-las fora. Só que, ao contrário do que o óbvio possa sugerir, uma vez que milhões de pessoas circulam pela cidade, fumam seus cigarros, comem seus bolinhos de arroz com alga, tomam café e chá verde de latinha, nenhum resto se vê pelo chão. Absolutamente nenhum. A verdade é que, numa cidade de 20 milhões de habitantes que geram 10 por cento das 50 milhões de toneladas de lixo produzidas no país inteiro, tem-se a consciência de que lugar de lixo, por menor que ele seja, é mesmo na lixeira. E como elas não estão à mão, nem nas mais largas avenidas, o negócio é carregar a porcaria na bolsa, nos bolsos, onde for. Atirar no chão, nunca.

E como tudo no Japão, até a coleta seletiva de lixo tem seu ritual. Se teve de carregar o lixo até em casa, não pense que vai despachá-lo imediatamente. Aqui o entulho tem dia e hora certos pra irem pro depósito. E se o caminhão de coleta de resíduos orgânicos passa às oito da manhã da segunda-feira, nada de deixar os sacos na frente de casa no domingo à noite, ou você será o próximo herói da comunidade de corvos local. Além do mais, neste verdadeiro quebra-cabeças da reciclagem, o dia de jogar fora garrafa de plástico não é o mesmo de se livrar de jornal velho, que, por sua vez, é armazenado separado do papelão e da revista velha. E ai de você quando o lixeiro perceber que o lixo esperando pela coleta está “errado”. O autor do “equívoco”, além de ficar com a porcaria na frente de casa por mais tempo, ainda leva um bilhetinho desaforado por cima dos sacos. Esses, aliás, que além de duplos, têm de ser cobertos com uma rede de náilon, para evitar que os corvos estraçalhem o plástico e emporcalhem a rua toda. Porque aí, a confusão pode ser ainda maior. Falsos moralismos-de-época-de-eleição à parte, isso é o que podemos chamar de verdadeira lição de cidadania.

Publicado em 27 de setembro de 2002.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Leo entre os japas

Japonês que se preza é organizado, educado. Adepto da boa higiene a ponto de causar inveja ao suíço mais fanático. Japonês também adora uma fila. Se organiza pra atravessar a rua, pra entrar no metrô. Diante de uma exposição de obras de arte, não poderia ser diferente. Seja numa galeria minúscula, num subsolo obscuro, ou num grande museu de arte, lá estarão eles, esperando pacientemente a vez para admirar o que quer que seja.

Mas e se a obra em questão for um Leonardo da Vinci, uma das poucas peças do mestre em exibição no mundo inteiro? Aí vale tudo, até perder uma manhã viajando, só para ver A dama com um arminho, obra do mestre florentino, datada de 1490. O quadro faz parte do acervo do Museu da Princesa Czartoryski, de Cracóvia. E pela primeira vez na história atravessa Europa e Ásia para aportar em terras nipônicas. Está no Museu de arte de Yokohama, cidade onde será disputada a final da Copa do Mundo, no dia 30 de junho.

A Dama representa a figura de Cecilia Gallerani, amante do mecenas de Leonardo, o milanês Ludovico Sforza. A peça reina absoluta, numa galeria exclusiva. E apesar da disciplina dos visitantes, é preciso um guardinha mal-humorado para dispersar a multidão.

Recebida com vivas e urras pela crítica japonesa, não faltou quem desmerecesse os esforços do Museu de Yokohama. Houve até quem dissesse que a Dama ali faz o mesmo papel de um naco de bom queijo numa ratoeira. É claro, apesar da boa vontade dos locais, é preciso sim um bom motivo para sair de Tóquio e viajar 40 quilômetros, correndo o risco de ter de enfrentar um trânsito infernal. A curadoria da exposição, contudo, não se importa em ser ou não “armadilha”. “Quem vier vai poder ver outros trabalhos maravilhosos como A virgem com a criança, de Vincenzo Catenas”, diz Hideko Numata, da equipe de curadores da mostra. Mas diante o brilho da Lady, o restante da exposição fica sim ofuscada. Mesmo uma peça de Carlo Crivelli, o Santo Antônio de Abbot e Santa Lúcia não consegue atrair tantos curiosos quanto a Lady.


A coleção fica exposta em Yokohama até 7 de abril. É constituída de 108 peças entre pinturas, tapeçarias, manuscritos e objetos, alguns deles datados do remoto século 11.

Publicado em 16 de março de 2002.

Foto de divulgação

Asakusa, Tóquio: Buda e samba no pé

Num dia qualquer, lá pelo ano 628 d.C., quando jogavam suas redes no rio Sumida, dois pescadores encontraram uma estátua de ouro de Kannon, a deusa budista da misericórdia. Em louvour a ela, os dois irmãos decidiram construir um santuário. Mal sabiam eles que mil e tantos anos mais tarde, essa pequena construção viraria o Senso-ji, o maior, mais sagrado e espetacular templo de Tóquio.

E não por menos, o Senso-ji fica em Asakusa (lê-se Assakssa) um dos pontos mais tradicionais de Tóquio. Com o passar dos anos, a construção dos pescadores foi se espalhando e ao redor dela portões e outros pequenos templos foram sendo edificados. Escapando incólumes a vários terremotos, as construções, entretanto, não resistiram aos bombardeios da Segunda Guerra. Quase tudo foi destruído, mas hoje os prédios estão novamente no lugar, reconstruídos como mesmo estilo Edo.

Entra-se no templo pelo Portão do Trovão, ou Kaminarimon. A imensa lanterna de três metros de comprimento, bem no meio da passagem, é um dos principais símbolos da cidade. O portão leva à Nakamise-dori, um corredor com mais de 100 barracas nas quais encontra-se um pouco de tudo que há no Japão: comidas tradicionais — como o Kaminari Okoshi, ou os biscoitos do Trovão — quimonos, leques, sombrinhas e bonecas.

No Fim da Nakamise-dori, chega-se a outro portão, o Hozomon, onde está guardado um tesouro com vários sutras, as regras de moral chinesas do século 14. Alguns metros adiante está o pavilhão principal, com um laminado a ouro e a imagem original de Kannon.

Mas os poderes divinos do templo — como tirar a sorte e curar doenças — estão fora do pavilhão principal. Para ler a sorte no o-mikuji, basta sacudir uma caixa de madeira cheia de palitos. Retira-se um. Gravado no palito há um número, que corresponde a uma gaveta. Dentro dela estará a sorte. Se o papel indicar má-sorte, pode-se tentar evitá-la amarrando o papel numa árvore. No joukoro, ou queimador de incenso, basta “pegar” um pouco da fumaça que sai de uma enorme lareira redonda e tocar a parte do corpo adoentada. Acredita-se que é cura na certa.

Engana-se quem pensa que só de crenças budistas vive Asakusa. À direita do Senso-ji há um santuário Xintoísta dedicado aos pescadores que encontraram a estátua de Kannon. É de lá que começa o maior festival anual da cidade, o Sanja Matsuri. No final de agosto, no entanto, apesar do nome, a festa em Asakusa é bem brasileira: carnaval de rua com muita ginga e desfile de escolas de samba.
Publicado em 16 de agosto de 2002.