terça-feira, 3 de junho de 2008

E então, o mundo nunca mais foi o mesmo...

Na manhã do dia 11 de setembro, a correspondente da Tablado em Nova York, Maria Alice Monteiro, preparava-se para mais um dia como qualquer outro. Quando abriu o jornal na internet, custou a entender que o mundo jamais seria o mesmo. Em minutos, as Torres Gêmeas, as quais visitara com o irmão há dois meses, sucumbiam. Em três anos vivendo em Manhattan, jamais pensara que um dia viria ao vivo cenas que imaginara apenas poderem ser materializadas por recursos de computação gráfica em Hollywood. Nas noites seguintes, teve pesadelos e via o rosto do terroristas estampados nas paredes do apartamento onde mora, no Upper East Side, de onde deu esta entrevista, com exclusividade para a Tablado.


TABLADO: Aqui de longe a gente observa dois sentimentos fortes nos americanos: medo e vingança. Falemos primeiro do medo. Como você sente isso na sua rotina na cidade após os atentados?
MARIA ALICE MONTEIRO: É muito difícil pra quem está acostumado a sair pelas ruas a pé — muitas vezes de madrugada — entrar e sair das estações de metrô abarrotadas ou passear pelos símbolos da cidade, de repente parar pra pensar se essas atividades ainda são seguras. Os atentados às Torres Gêmeas tiraram a liberdade da gente. Não há pânico nas ruas, não há esse clima de guerra que estão pintando no Brasil. Mas, apesar do aumento do policiamento nas ruas e da vigilância nos prédios públicos, até passa pela sua cabeça que você pode descer dois, três subsolos da estação de metrô Grand Central e não subir nunca mais.

TABLADO: A gente sabe que, pra muito americano, motorista de táxi árabe e engraxate brasileiro não têm muita diferença. É tudo “não-americano”. Na sua opinião, esse medo, que beira a paranóia, vai mudar (ou já mudou) a forma dos americanos tratarem os estrangeiros, de um modo geral, e os brasileiros, em particular?
MARIA ALICE: Realmente, o norte-americano não é mestre em distinguir nacionalidades. Só que o nova-iorquino está muito acostumado a conviver com “não-americanos”. Mesmo a gente, que não vive aqui desde pequeno, já acostumou com essa imensa mistura de raças. O fato de o nova-iorquino não olhar no olho de ninguém também não contribui para que ele perceba as diferenças. Aqui ninguém está muito interessado em reparar na nacionalidade do cidadão. Você entra no táxi, diz pra onde quer ir e estamos conversados. Até o dia 11, se o motorista era um árabe barbudo, um indiano de turbante ou um baita negrão ouvindo rádio em francês, não fazia a menor diferença. Não acredito que hoje essa mentalidade seja a mesma. É impossível você não ficar pelo menos um pouco paranóico. Outro dia, ao sair da produtora onde eu trabalho, no Times Square, peguei um táxi cujo motorista era a cara do Bin Laden. Claro que fiquei com o pé atrás. Não deixei de pegar o táxi, mas fiquei pensando: ‘E se esse maluco resolve entrar, de carro e tudo, dentro do Plaza, ou da MTV?’ Saquei meu celular e liguei pro meu marido. E comecei a falar português, bem alto, pra pelo menos ele perceber que eu não era americana...

TABLADO: O Departamento de Justiça deteve 75 imigrantes para averiguação e estendeu o prazo para manter suspeitos sob custódia, sem acusá-los formalmente. Já há casos de muçulmanos hostilizados em vários pontos dos EUA. Isso não é um terreno fértil para o preconceito contra o estrangeiro, que já faz parte da cabeça de muito americano?
MARIA ALICE: Bastante. E agora isso faz parte do sentimento de vingança pelo qual algumas pessoas estão tomadas. Os jornais mostram todos os dias mais e mais “crimes de ódio” praticados por americanos contra pessoas confundidas com árabes. Mas o governo disse que vai punir muito firmemente esses atos. E vai cumprir essa promessa, tenho certeza.

TABLADO: Um brasileiro já foi espancado aí em Nova York porque o confundiram com um muçulmano. Serão tempos difíceis para os brasileiros aí, sejam visitantes ou moradores?
MARIA ALICE: Na verdade, o caso do Hermes foi desmentido. A confusão ali foi outra. De qualquer forma — e isso não comecei a achar agora — acredito que o brasileiro leva uma desvantagem básica: ser parecido com todo mundo. Por isso que um passaporte brasileiro roubado, por exemplo, vale uma nota. Porque poderia pertencer a qualquer um, oriental, árabe, italiano. Junta-se a isso, o fato de o americano médio não conseguir distinguir muito fisionomias ou línguas. Isso, em tese, poderia tornar o brasileiro vulnerável. Conheço uma moça brasileira que foi agredida em Washington na época da guerra do golfo porque a gangue que a atacou achava que ela era iraniana. E ela é quase tão branquela quanto eu. Mas estes são casos isolados. Não acho que isso torne-se realmente uma ameaça, nem para brasileiros visitantes, nem pra moradores.

TABLADO: O governador do Estado de Nova York, George Pataki, já fala em estabelecer a pena de morte para terroristas, em Nova York.
MARIA ALICE:
Não acho que a morte seja castigo suficiente pra quem comete crimes bárbaros como esse. Mas essa é uma opinião pessoal.

TABLADO: Falemos agora do sentimento de vingança. O povo aí quer guerra mesmo?
MARIA ALICE: O americano está com seu sentimento maior — o orgulho — muito ferido. Quer ir à forra do jeito que for, desde que o massacre nas torres não fique impune. Pra mim, neste momento, a palavra guerra já está mais banalizada que “eu te amo” em novela da Globo. Só que ninguém está pensando muito bem nas conseqüências reais de um conflito. E pra complicar mais a situação, o discurso de George W. Bush está parecendo roteiro de filme do John Wayne. Outro dia vi numa banca de jornal uma foto do Bin Laden com um letreiro “WANTED”, naquelas letras típicas de filme de mocinho. Não acredito que essa seja a melhor forma de tratar um possível confronto que pode pôr em jogo a vida de mais um bocado de civis.

TABLADO: E ninguém tem medo de uma Terceira Guerra Mundial? Você tem esse medo?
MARIA ALICE: Senti nas primeiras horas, durante e logo após os ataques. Mas agora, e diante da disponibilidade de praticamente o mundo inteiro não concordar com um conflito maior, não acredito que essa situação se estenda a esse ponto.

TABLADO: Por aqui, até um rabino, o Henry Sobel (presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista) andou dizendo que o “mal absoluto só pode ser vencido pela força bruta”. É a luta do bem contra o mal?
MARIA ALICE: Com todo o meu respeito aos evangélicos, isso parece discurso da Igreja Universal. Nesse caso não há mocinho ou bandido absoluto. Claro que o que fizeram com as pessoas que estavam nas torres no dia 11 é de uma maldade incomensurável. A cidade está vivendo um velório coletivo. Por toda parte você vê cartazes com as fotos de pessoas desaparecidas. Nas esquinas e em frente às estações do corpo de bombeiros há verdadeiros altares com flores, velas e fotos de gente que morreu tentando salvar quem estava preso nas torres. A quantidade de fotos gente jovem desaparecida, muitas junto dos filhos pequenos é assustadora. A crueldade com que racharam o coração de uma quantidade imensa de famílias americanas não tem perdão. Mas daí a acreditar que os Estados Unidos representam o bem absoluto...

TABLADO: A mídia daí parece ter assumido esse sentimento de que dane-se a diplomacia e de que é preciso responder com chumbo grosso ao orgulho ferido. Desde que o George W. Bush falou em primeira guerra do novo século, todo mundo comprou a idéia. A CNN fala abertamente em “America on War”.
MARIA ALICE: Não concordo inteiramente com o “dane-se” não. Acho que desde aquela seqüencia de foras que a TV norte-americana deu nas eleições do Bush, eles ficaram mais cuidadosos com o que botam no ar. Quem está pregando a resposta com chumbo grosso é a própria turma do Bush. Você e eu somos jornalistas e sabemos que não dá pra ficar mascarando um sentimento desses vindo do governo. Como não publicar que “o país está em guerra” se essas foram palavras do próprio presidente? Acho que quem não está nem aí para a diplomacia é o próprio Bush. Onde já se viu ir pra televisão dizer que quer o cara vivo ou morto? Claro, não sejamos ingênuos a ponto de ignorar que a CNN e as outras redes podem estar pondo mais lenha na fogueira. Lógico que estão. Estão ajudando a incitar a vingança... e o americano é muito orgulhoso, patriota, compra essa idéia com muita facilidade.

TABLADO: Vi o Dan Rather outro dia (um jornalista veterano e respeitado da CBS) no David Letterman, aos prantos, elogiar o Bush e falar em vingança. É por aí?
MARIA ALICE: Aquilo foi patético. Não gosto do David Letterman, não vejo o programa dele, tenho horror das piadas que ele conta. Mas naquele dia, quando vi os absurdos que o Dan Rather estava dizendo, confesso que parei pra ver. Ele teve o desplante de dizer que o que motivou os atentados às torres fora a inveja. Ora, pelo amor de Deus... o pior é que o americano coitadinho lá do Alabama, de Utah, que não tem a menor idéia dos verdadeiros motivos pelos quais o World Trade Center e o Pentágono foram atacados, acredita... Se bem que há quem diga que a choradeira foi encenação. Não duvido.

TABLADO: Aliás, o David Letterman foi ovacionado quando disse que, pra ele, Nova York continua sendo a maior cidade do mundo. Você concorda com ele?
MARIA ALICE: Completamente. Não que Nova York seja a única grande cidade — apesar de os nova-iorquinos acharem isso sim — mas a Grande Maçã é grandiosa... Veja bem: aqui você tem uma grande concentração das nossas, digamos, necessidades básicas. Você tem grandes museus, grandes lojas, grandes peças de teatro em cartaz... e o maior centro financeiro do mundo. Portanto, apesar da arrogância da população, dessa mania de achar que tudo que não for de ou em Nova York é “resto”, não dá pra não admitir que Nova York é maior cidade do mundo.

TABLADO: Da maneira como eu vejo, e tenho lido, o George W. Bush, um presidente eleito aos trancos e barrancos (com aqueles votos sumidos da Flórida), está tentando matar três coelhos com uma cajadada só: vingar os americanos, tirar o país da recessão impulsionando a indústria bélica (sua amiga desde a campanha) e ganhar legitimidade. Com isso, está revivendo a guerra fria, dividindo o mundo em dois blocos: os que apoiam incondicionalmente os americanos e os que não apoiam. O secretário de Comércio, Donald Evans, chegou a dizer que o país que não apoiar os EUA vai sofrer sanções econômicas. Que diabos é tudo isso?
MARIA ALICE: Concordo em parte. Financeiramente, o país já andava muito bem e daqui pra frente vai encarar uma recessão muito, muito feia. Não falo só em Wall Street não. Outros segmentos da economia estão apavorados com as conseqüências dos ataques. Os turistas estão se mandando de Nova York. Os restaurantes, principalmente naquela área do Times Square, estão vazios. Os hotéis estão trabalhando, em média, com só 25 por cento da ocupação. Só essa semana, cinco musicais da Broadway estão saindo de cartaz, fora outros tantos que estão ameaçados de ter o mesmo fim. Isso significa que os atentados não rebentaram a cidade só fisicamente. Rebentaram com o coração da população, que não se conforma com tanta gente morta. Rebentaram com o coração financeiro, e como conseqüência de tudo isso, estão prejudicando imensamente o turismo.

TABLADO: Onde você e seu marido estavam no momento dos atentados?
MARIA ALICE: Estava tomando café da manhã em casa, quando abri O Globo na internet. Lá estava a foto das torres. Uma já estava em chamas. Me apavorei, mas achei que tinha sido um acidente. Tentei abrir o New York Times, mas o site já estava congestionado. Aí liguei a televisão. Nisso a outra torre já tinha sido atingida. Fiquei tão atordoada que não me dei conta imediatamente que aquilo poderia ter sido um ataque terrorista. Dali pra diante, comecei a escrever para as pessoas no Brasil para tranqüilizá-las, dizer que o atentado tinha sido em Downtown e como eu moro em Uptown, não tínhamos sofrido nada. Mas foi difícil convencer a família e os amigos de que estava tudo bem mesmo. Não parei de receber e-mails o dia todo, até porque as linhas telefônicas estavam — algumas ainda estão — comprometidas. Meu marido é diplomata, mas não tinha chegado a ir à ONU naquela manhã. Ainda era muito cedo e o prédio foi evacuado muito antes das reuniões começarem. Com o transporte coletivo interditado, ele andou 40 quadras até chegar em casa. No caminho viu as pessoas atordoadas, cabisbaixas, chororosas, ainda sem entenderem muito bem o que tinha acontecido.

TABLADO: Depois disso vocês já passaram perto da área dos ataques?
MARIA ALICE: Ainda não. O acesso à região abaixo da Rua Canal ainda é difícil e restrito. Tem muita poeira e resíduos de amianto no ar. Nos dias seguintes ao ataque, até no Times Square tinha gente andando de máscara. O ar não está ruim em toda a cidade, mas lá embaixo não sei se é bom arriscar. Além disso, o prefeito Rudy Giuliani pediu a todos que se mantivessem o mais longe possível daquela área. Então estamos evitando.

TABLADO: Você ainda tá com medo de novos ataques?
MARIA ALICE: Sim e acredito que apesar de a cidade estar voltando a sua rotina, as pessoas não sabem bem o que esperar em caso de retaliação. E mesmo que não haja mais nenhuma reação terrorista, acredito que todo mundo ainda vai ter receio por bastante tempo.

TABLADO: Como isso muda (se é que muda) sua rotina de vida, de trabalho...?
MARIA ALICE: Mudar, muda. Como trabalho numa produtora de televisão e nossa equipe é minúscula, temos tido trabalho triplicado. Na primeira semana foi uma correria alucinada. E não dava pra ficar pensando muito se corríamos algum risco. Só rezávamos pra que o edifício não fosse evacuado. Um dos prédios da Nasdaq, nosso vizinho, assim como outros no Times Square foram esvaziados por ameaça de bomba. Conosco, felizmente não aconteceu nada. Se acontecesse, só complicaria mais a nossa vida. Mas assim como o resto da população, você não pode se deixar abater totalmente pela situação. Você precisa tocar o barco adiante e tentar fazer com que os acontecimentos influenciem o menos possível a sua rotina.

TABLADO: Já deve ter gente em Hollywood pensando em fazer filme com essa tragédia. Que nome você daria a ele?
MARIA ALICE: Eu tinha pensado nisso também. Mas a essa altura, tenho minhas dúvidas. Pelo menos por enquanto. Está todo mundo muito traumatizado. Olha quantos filmes foram cancelados por falarem em terrorismo ou nas torres. O norte-americano está profundamente ferido. E acredito que nem a necessidade maior deles, que é fazer dinheiro, vai falar mais alto dessa vez. Em todo caso, se alguém tivesse o mau gosto de produzir alguma coisa com esse tema e coubesse a mim dar o nome ao filme, talvez o chamasse com o título de uma matéria que saiu na revista Time do dia 14 de setembro: If You Want To Humble An Empire, ou “Se você quiser humilhar um império”. Claro que com esse nome, o diretor não seria norte-americano.

TABLADO: Nova York algum dia será a mesma?
MARIA ALICE: Que a cidade vai se reerguer, disso eu não tenho dúvida. A população está se mobilizando para isso e o prefeito Giuliani tem dado uma força imensa pra que as pessoas e as empresas consigam minimizar o sofrimento e o prejuízo. Mas Nova York já não é mais a mesma desde o minuto seguinte ao primeiro ataque. Num aspecto geral, porque os americanos perceberam que não são os invencíveis que sempre pensaram ser. Depois, se você avaliar individualmente, onde está a arrogância, a “atitude” nove-iorquina? Pode ser que essa “paz” seja momentânea, frutos do transe em que a cidade se encontra. Mas não duvido que os acontecimentos vão mudar a postura de muita gente.

TABLADO: O que você diria para um brasileiro que (ainda) tem vontade de visitar NY?
MARIA ALICE: Espere a poeira baixar (literalmente) e venha. Venha sim. Nova York vai se reerguer e não vai demorar muito. E depois, apesar do skyline não ser mais o mesmo, não duvido que daqui pra frente Nova York não se torne melhor ainda do que era antes da ruína das Torres Gêmeas.


Publicado em 21 de setembro de 2001.

sábado, 15 de março de 2008

Lixo é uma questão de cultura?

Certa vez, quando acabava de me mudar para Brasília, há uns bons oito anos, ainda ignorando a distância a pé entre o Conjunto Nacional e o Setor de TV Sul, resolvi arriscar uma caminhada. Munida de um providencial coco gelado, enquanto sorvia o líquido, fui atravessando tortuosas trilhas de areia vermelha que cortavam o coração da capital. No fim, nem tão má fora a caminhada, apesar de não muito cômoda. E não pelo caminho irregular, mas porque até chegar ao meu destino não consegui me desfazer da casca da fruta... Ingênua fui em pensar que poderia encontrar uma lata de lixo no meio do cerrado. Afinal de contas, por que alguém teria a brilhante idéia de espalhar lixeiras pelo meu caminho, se o projeto de Lucio Costa não previa que alguém se atrevesse a andar por ali? Certamente, se a consciência não me pesasse, seguiria o exemplo de outros transeuntes e faria meu depósito do fruto seco ali mesmo, no meio do areão.

O que espanta é, ao andar pelas ruas de Tóquio, onde há tempos não existem espaços para trilhas de terra, acontecer algo semelhante. Felizmente, os cocos verdes não estão disponíveis na cidade, porque se estivessem, e precisássemos nos desfazer da casca em plena caminhada, não encontraríamos lixeiras para jogá-las fora. Só que, ao contrário do que o óbvio possa sugerir, uma vez que milhões de pessoas circulam pela cidade, fumam seus cigarros, comem seus bolinhos de arroz com alga, tomam café e chá verde de latinha, nenhum resto se vê pelo chão. Absolutamente nenhum. A verdade é que, numa cidade de 20 milhões de habitantes que geram 10 por cento das 50 milhões de toneladas de lixo produzidas no país inteiro, tem-se a consciência de que lugar de lixo, por menor que ele seja, é mesmo na lixeira. E como elas não estão à mão, nem nas mais largas avenidas, o negócio é carregar a porcaria na bolsa, nos bolsos, onde for. Atirar no chão, nunca.

E como tudo no Japão, até a coleta seletiva de lixo tem seu ritual. Se teve de carregar o lixo até em casa, não pense que vai despachá-lo imediatamente. Aqui o entulho tem dia e hora certos pra irem pro depósito. E se o caminhão de coleta de resíduos orgânicos passa às oito da manhã da segunda-feira, nada de deixar os sacos na frente de casa no domingo à noite, ou você será o próximo herói da comunidade de corvos local. Além do mais, neste verdadeiro quebra-cabeças da reciclagem, o dia de jogar fora garrafa de plástico não é o mesmo de se livrar de jornal velho, que, por sua vez, é armazenado separado do papelão e da revista velha. E ai de você quando o lixeiro perceber que o lixo esperando pela coleta está “errado”. O autor do “equívoco”, além de ficar com a porcaria na frente de casa por mais tempo, ainda leva um bilhetinho desaforado por cima dos sacos. Esses, aliás, que além de duplos, têm de ser cobertos com uma rede de náilon, para evitar que os corvos estraçalhem o plástico e emporcalhem a rua toda. Porque aí, a confusão pode ser ainda maior. Falsos moralismos-de-época-de-eleição à parte, isso é o que podemos chamar de verdadeira lição de cidadania.

Publicado em 27 de setembro de 2002.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Leo entre os japas

Japonês que se preza é organizado, educado. Adepto da boa higiene a ponto de causar inveja ao suíço mais fanático. Japonês também adora uma fila. Se organiza pra atravessar a rua, pra entrar no metrô. Diante de uma exposição de obras de arte, não poderia ser diferente. Seja numa galeria minúscula, num subsolo obscuro, ou num grande museu de arte, lá estarão eles, esperando pacientemente a vez para admirar o que quer que seja.

Mas e se a obra em questão for um Leonardo da Vinci, uma das poucas peças do mestre em exibição no mundo inteiro? Aí vale tudo, até perder uma manhã viajando, só para ver A dama com um arminho, obra do mestre florentino, datada de 1490. O quadro faz parte do acervo do Museu da Princesa Czartoryski, de Cracóvia. E pela primeira vez na história atravessa Europa e Ásia para aportar em terras nipônicas. Está no Museu de arte de Yokohama, cidade onde será disputada a final da Copa do Mundo, no dia 30 de junho.

A Dama representa a figura de Cecilia Gallerani, amante do mecenas de Leonardo, o milanês Ludovico Sforza. A peça reina absoluta, numa galeria exclusiva. E apesar da disciplina dos visitantes, é preciso um guardinha mal-humorado para dispersar a multidão.

Recebida com vivas e urras pela crítica japonesa, não faltou quem desmerecesse os esforços do Museu de Yokohama. Houve até quem dissesse que a Dama ali faz o mesmo papel de um naco de bom queijo numa ratoeira. É claro, apesar da boa vontade dos locais, é preciso sim um bom motivo para sair de Tóquio e viajar 40 quilômetros, correndo o risco de ter de enfrentar um trânsito infernal. A curadoria da exposição, contudo, não se importa em ser ou não “armadilha”. “Quem vier vai poder ver outros trabalhos maravilhosos como A virgem com a criança, de Vincenzo Catenas”, diz Hideko Numata, da equipe de curadores da mostra. Mas diante o brilho da Lady, o restante da exposição fica sim ofuscada. Mesmo uma peça de Carlo Crivelli, o Santo Antônio de Abbot e Santa Lúcia não consegue atrair tantos curiosos quanto a Lady.


A coleção fica exposta em Yokohama até 7 de abril. É constituída de 108 peças entre pinturas, tapeçarias, manuscritos e objetos, alguns deles datados do remoto século 11.

Publicado em 16 de março de 2002.

Foto de divulgação

Asakusa, Tóquio: Buda e samba no pé

Num dia qualquer, lá pelo ano 628 d.C., quando jogavam suas redes no rio Sumida, dois pescadores encontraram uma estátua de ouro de Kannon, a deusa budista da misericórdia. Em louvour a ela, os dois irmãos decidiram construir um santuário. Mal sabiam eles que mil e tantos anos mais tarde, essa pequena construção viraria o Senso-ji, o maior, mais sagrado e espetacular templo de Tóquio.

E não por menos, o Senso-ji fica em Asakusa (lê-se Assakssa) um dos pontos mais tradicionais de Tóquio. Com o passar dos anos, a construção dos pescadores foi se espalhando e ao redor dela portões e outros pequenos templos foram sendo edificados. Escapando incólumes a vários terremotos, as construções, entretanto, não resistiram aos bombardeios da Segunda Guerra. Quase tudo foi destruído, mas hoje os prédios estão novamente no lugar, reconstruídos como mesmo estilo Edo.

Entra-se no templo pelo Portão do Trovão, ou Kaminarimon. A imensa lanterna de três metros de comprimento, bem no meio da passagem, é um dos principais símbolos da cidade. O portão leva à Nakamise-dori, um corredor com mais de 100 barracas nas quais encontra-se um pouco de tudo que há no Japão: comidas tradicionais — como o Kaminari Okoshi, ou os biscoitos do Trovão — quimonos, leques, sombrinhas e bonecas.

No Fim da Nakamise-dori, chega-se a outro portão, o Hozomon, onde está guardado um tesouro com vários sutras, as regras de moral chinesas do século 14. Alguns metros adiante está o pavilhão principal, com um laminado a ouro e a imagem original de Kannon.

Mas os poderes divinos do templo — como tirar a sorte e curar doenças — estão fora do pavilhão principal. Para ler a sorte no o-mikuji, basta sacudir uma caixa de madeira cheia de palitos. Retira-se um. Gravado no palito há um número, que corresponde a uma gaveta. Dentro dela estará a sorte. Se o papel indicar má-sorte, pode-se tentar evitá-la amarrando o papel numa árvore. No joukoro, ou queimador de incenso, basta “pegar” um pouco da fumaça que sai de uma enorme lareira redonda e tocar a parte do corpo adoentada. Acredita-se que é cura na certa.

Engana-se quem pensa que só de crenças budistas vive Asakusa. À direita do Senso-ji há um santuário Xintoísta dedicado aos pescadores que encontraram a estátua de Kannon. É de lá que começa o maior festival anual da cidade, o Sanja Matsuri. No final de agosto, no entanto, apesar do nome, a festa em Asakusa é bem brasileira: carnaval de rua com muita ginga e desfile de escolas de samba.
Publicado em 16 de agosto de 2002.