terça-feira, 22 de maio de 2007

China não. É Xangai

de Xangai, China

Se no final da rua se avistasse uma montanha, seria a Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Se houvesse mais viadutos ainda, seria Tóquio. Se símbolos capitalistas não estivessem tão presentes, até poderia ser a China. Mas é a China. Só que Xangai, ainda que seja o principal centro comercial e industrial Chinês, é a menos chinesa de todas as cidades.


Há mil anos era meramente uma vila de pescadores. Oitocentos anos mais tarde, tornou-se um próspero centro de cultivo de algodão. Com o fim da primeira Guerra do Ópio — entre China e Grã-Bretanha — em 1842, a China foi forçada a abrir Xangai aos britânicos e mais tarde aos franceses, que se instalaram ao norte da cidade original. Como resultado, uma cidade de arquitetura curiosa, culturas misturadas; sem a “dureza” de Pequim, mas que ainda mantém traços notáveis da tradição oriental.
O “Bund”, como é chamada a área às margens do rio Huangpu, é onde se concentra o legado europeu da cidade. Franceses e britânicos trataram de erguer ali prédios em estilo colonial, que abrigaram a alfândega, bancos, hotéis importantes, estabelecimentos comerciais e residências. Nos anos 40 e 50, no entanto, os estrangeiros começaram a deixar Xangai e as mesmas construções viraram escritórios do governo chinês. O Bund do século 21 tem os melhores restaurantes da cidade e uma vista fantástica para o outro lado do Huangpu: Pudong.

Há dez anos, dos terraços do Bund, só se via pântano e campos de arroz. Hoje, Pudong, a margem de lá do Huangpu, tem um dos skylines mais famosos do planeta. Retrato em concreto da nova Xangai, com direito a uma vizinhança poderosa: do maior hotel do mundo — o Jin Mao Tower, com 421 metros — à mais importante bolsa de valores chinesa, a Shanghai Stock Exchange (SSE).

Mas, como estamos na China, também em Xangai o progresso se mescla ao retrocesso de forma assustadora. Do precário Mercado Dongtai (confuso, mas fantástico para quem procura quinquilharias), vê-se os arranha-céus envidraçados que sevem de pano de fundo para centenas de barraquinhas nas quais se encontra de tudo: de porcelanas e lanternas de papel, até objetos da época da Revolução Cultural, muito provavelmente as única mercadoria autêntica que você vai encontrar por aqui. Outro achado, não menos caótico, é o Mercado Xiangyang, só que para roupas de marca, muito possivelmente falsificadas, mas de ótima qualidade e preços absurdamente baixos.

É claro, há os templos e jardins. O mais interessante deles é o Yu Yuan (Jardim do Contentamento). Concluído em 1557, virou residência do Ministro das Punições da Dinastia Ming (1364 a 1644). São dois hectares bem no centro de Nanshi (Cidade Velha) nos quais encontram-se fantásticos pavilhões de pelo menos 400 anos, lagoas, pontes em arco e jardins dentro do jardim. Viagem por um túnel do tempo cercado por um imenso dragão permanentemente a vigiar.


Publicado em 2 de setembro de 2004.

Macau de misturas

de Macau, China

Ao final de uma pequena jornada por entre templos e prédios coloniais europeus, entramos num restaurante decididos a comer bacalhau. Numa das mesas, seu Afonso, o dono, fuma um cigarro:


– O que mudou quando Macau voltou para a mão dos Chineses?, perguntamos a ele, em meio a garfadas do peixe servido à moda Brás.
– Pois voltou? Mas esta terra nunca deixou de ser dos chineses! Responde o português, achando graça.

Contam historiadores que Macau foi ocupada por lusitanos em 1557, quando Chang Tse-Lac, pirata conhecido na região, foi derrotado em mares chineses com a ajuda dos portugueses. Com isso, foi concedido aos europeus o direto às terras macaenses, criando o primeiro entreposto comercial (depois cultural e religioso) entre o ocidente e o oriente.

Mais de 400 anos depois, já de volta às mãos orientais, mas como Região Aministrativa Especial da China, praticamente só o que sobrou de Portugal por aqui foi o idioma. Até nas fachadas mais modestas, os letreiros são bilíngües. Mas não as pessoas. Bem lembrado, seu Afonso. Essa terra realmente nunca foi portuguesa.

Os macaenses antigos, de boa vontade, chegam a arriscar que a cidade parece Hong Kong de décadas atrás. Diria eu que mais lembra o decadente da HK de hoje. Em Macau, a arquitetura colonial recém restaurada se mistura a prédios mal conservados nos quais amontoa-se uma população local que, depois de muito tempo, vê uma luz no fim do túnel da economia local. A instalação de cassinos, alguns deles de grandes cadeias norte-americanas geram mais do que emprego: atiçam a ambição dos habitantes do continente, já que o jogo é proibido em território chinês.

Mas não é só o tilintar dos caça-níqueis que tem atraído turistas à península e às ilhas ao redor. O legado de séculos de pura mistura de raças, culturas e tradições está por toda parte. A Igreja de São Paulo, por exemplo, foi desenhada em 1602 por um jesuíta italiano. Com a ajuda de cristãos japoneses (que fugiram de Nagasaki em 1597, quando 26 católicos foram martirizados) a igreja foi construída no topo de um morro no centro da cidade. Em 1835, durante um tufão, a igreja pegou fogo e o prédio nunca mais foi reconstruído. Até hoje resta apenas a fachada de símbolos misturados – a Virgem Maria ao lado de uma peônia (símbolo chinês) e o crisântemo, representando o Japão.

Do outro lado da rua, o Museu de Macau traça, com muita competência, um paralelo das civilizações chinesas e européias, resumindo história, tradições e costumes locais. Mais adiante, descendo a ladeira, uma calçada de pedra portuguesa – lembrando a praia de Copacabana – corta o Largo do Senado. A área é a assim chamada por causa do Leal Senado (atual conselho municipal), um dos prédios de fachada neoclássica, construídos ali no século 19. No passado, sempre que um governador português assumia o cargo, era ali que ele passava a tropa em revista. Mas sem direito a provar do bacalhau do seu Afonso.
Publicado em 31 de julho de 2004.

A capital dos contrastes

de Hong Kong

Vistos do alto do pico Vitória, os arranha-céus brotam da estreita faixa entre a montanha e o mar, desenhado um dos skylines mais fantásticos do mundo. Lá embaixo, entre a ilha de Hong Kong e a península de Kowloon, a enseada que também ganhou o nome da rainha recém coroada quando a China foi forçada, em 1842, a ceder este território aos britânicos por causa da Guerra do Ópio.

Para percorrer 6 mil anos de costumes, crenças, e muita história nada melhor que passar uma tarde no Museu Histórico de Hong Kong, que reconstiui, com precisão, episódios como a própria Guerra do Ópio e da ocupação japonesa, com direito a um passeio pelas ruas da velha cidade. Entre os prédios, todos em estilo europeu, uma loja de de ervas chinesas que permaneceu aberta no centro de HK até 1980.

Fora do museu, entretanto, pouco restou dos 156 anos de colônia. O inglês ainda é língua oficial, mas entre os locais — a maioria chineses da etnia Han — só se fala cantonês. Nas ruas, nada da arquitetura vitoriana. Além dos gigantescos prédios envidraçados — evidência em concreto de que HK ainda é um dos grandes centros financeiros do mundo — só construções antigas, malcuidadas, decadentes. Letreiros de ideogramas imensos. Neons coloridos. E um certo desleixo, típico daquele lado de lá.
Só não há descuido no que tange a culinária. Dizem que a maior concentração de restaurantes chineses do mundo está em Hong Kong. E aí, a parada obrigatória é o Fook Lam Moon, em Kowloon, tido como melhor restaurante de comida cantonesa do mundo. Para os apreciadores de pratos exóticos há abalone, barbatana de tubarão e sopa de ninho de andorinha. O ninho, tecido com a saliva do pássaro é recolhido nos rochedos do sudeste asiático. E é claro, para quem não está disposto a se aventurar na extravagância, os básicos - porco agri-doce, arroz colorido e frango com castanhas já são de comer de joelhos.

Publicado em 9 de julho de 2004.

Quem disse que só os bichos hibernam?

de Stockbridge, Massachusets

Quem vê as árvores do Central Park no inverno, raquíticas e acinzentadas pelo frio, pode custar a acreditar que menos de quatro meses antes aquelas copas estavam cobertas de folhas de todas as cores. Entretanto, o festival de outono em Nova Iorque é uma parcela mínima do que acontece com a vegetação de pelo menos 40 estados norte-americanos. Aqui, as árvores não só se preparam para o inverno, como protagonizam um espetáculo a céu aberto fascinante.

É por isso que entre setembro e novembro, logo antes de ficar insuportavelmente frio, todo mundo pega a estrada para ver o fall foliage, ou a troca de cor das folhas, que formam um gigantesco arco-íris vegetal que encobre as montanhas e enche os olhos de quem passa.

A temperatura e a quantidade de chuva na estação anterior determinam se, no outono, a vegetação vai estar mais ou menos maravilhosa. Quanto mais chuvoso for o verão e mais ensolarados forem os dias de outubro, mais vivas serão as cores. E, em geral, quanto mais bonitas as tonalidades, mais curto é o período entre a troca de cor até a queda das folhas.

As tonalidades e o tempo de duração das melhores cores também podem variar de uma localidade para outra. A Nova Inglaterra — onde começou a revolução que originou a independência dos Estados Unidos da Grã-Bretanha — principalmente a região dos Berkshires, tem certamente o outono mais privilegiado, com cores que vão do amarelo claro ao roxo escuro, passando por todos os matizes de vermelho.

Se você está planejando uma viagem ao nordeste dos Estados Unidos, vale a pena passar alguns dias num dos hoteizinhos charmosos dos Berkshires, principalmente nas cidades de Lenox ou
Stockbridge. A primeira semana de outubro é em geral a mais bonita e mais procurada pelos turistas. Mas pelo menos nessa região, até o final do mês o espetáculo é garantido.

Publicado em 22 de setembro de 2000.

terça-feira, 1 de maio de 2007

Piquenique de primavera*

de Tóquio

Quem tem medo de alma penada que me perdoe. Mas, na primavera da terra do sol nascente, não há lugar mais exuberante do que os cemitérios. No fim de março, início de abril, quando os japoneses saem da toca para ver as cerejeiras floridas — o hanami — os budistas celebram o higan, uma semana de honras aos mortos. Em japonês literal, o termo significa “o outro lado da margem”, ou, para os budistas, o que os espera do outro lado do rio que divide a vida e a morte.

E aí, os locais aproveitam o pretexo para passear pelas alamedas cobertas pelas flores rosadas. Em Tóquio, o cemitério mais visitado durante o higan é o Aoyama-Bochi, o maior da cidade. Desde que o terreno virou cemitério, no final do século 19, mais de 100 mil pessoas já foram enterradas lá.

Agora, já que a beleza da vegetação convida, por que não ficar para lanchar? Não precisa nem trazer a matula de casa. É tão natural que grupos se reúnam para esticar a toalha xadrez no chão, entre os túmulos, que barraquinhas que vendem comida de todo o tipo vão sendo armadas pelas alamedas, assegurando que se a semana é dos mortos, os vivos também são filhos de Buda.
Publicado em 29 de março de 2002.
*Colaborou Yumiko Sakai