terça-feira, 3 de junho de 2008

E então, o mundo nunca mais foi o mesmo...

Na manhã do dia 11 de setembro, a correspondente da Tablado em Nova York, Maria Alice Monteiro, preparava-se para mais um dia como qualquer outro. Quando abriu o jornal na internet, custou a entender que o mundo jamais seria o mesmo. Em minutos, as Torres Gêmeas, as quais visitara com o irmão há dois meses, sucumbiam. Em três anos vivendo em Manhattan, jamais pensara que um dia viria ao vivo cenas que imaginara apenas poderem ser materializadas por recursos de computação gráfica em Hollywood. Nas noites seguintes, teve pesadelos e via o rosto do terroristas estampados nas paredes do apartamento onde mora, no Upper East Side, de onde deu esta entrevista, com exclusividade para a Tablado.


TABLADO: Aqui de longe a gente observa dois sentimentos fortes nos americanos: medo e vingança. Falemos primeiro do medo. Como você sente isso na sua rotina na cidade após os atentados?
MARIA ALICE MONTEIRO: É muito difícil pra quem está acostumado a sair pelas ruas a pé — muitas vezes de madrugada — entrar e sair das estações de metrô abarrotadas ou passear pelos símbolos da cidade, de repente parar pra pensar se essas atividades ainda são seguras. Os atentados às Torres Gêmeas tiraram a liberdade da gente. Não há pânico nas ruas, não há esse clima de guerra que estão pintando no Brasil. Mas, apesar do aumento do policiamento nas ruas e da vigilância nos prédios públicos, até passa pela sua cabeça que você pode descer dois, três subsolos da estação de metrô Grand Central e não subir nunca mais.

TABLADO: A gente sabe que, pra muito americano, motorista de táxi árabe e engraxate brasileiro não têm muita diferença. É tudo “não-americano”. Na sua opinião, esse medo, que beira a paranóia, vai mudar (ou já mudou) a forma dos americanos tratarem os estrangeiros, de um modo geral, e os brasileiros, em particular?
MARIA ALICE: Realmente, o norte-americano não é mestre em distinguir nacionalidades. Só que o nova-iorquino está muito acostumado a conviver com “não-americanos”. Mesmo a gente, que não vive aqui desde pequeno, já acostumou com essa imensa mistura de raças. O fato de o nova-iorquino não olhar no olho de ninguém também não contribui para que ele perceba as diferenças. Aqui ninguém está muito interessado em reparar na nacionalidade do cidadão. Você entra no táxi, diz pra onde quer ir e estamos conversados. Até o dia 11, se o motorista era um árabe barbudo, um indiano de turbante ou um baita negrão ouvindo rádio em francês, não fazia a menor diferença. Não acredito que hoje essa mentalidade seja a mesma. É impossível você não ficar pelo menos um pouco paranóico. Outro dia, ao sair da produtora onde eu trabalho, no Times Square, peguei um táxi cujo motorista era a cara do Bin Laden. Claro que fiquei com o pé atrás. Não deixei de pegar o táxi, mas fiquei pensando: ‘E se esse maluco resolve entrar, de carro e tudo, dentro do Plaza, ou da MTV?’ Saquei meu celular e liguei pro meu marido. E comecei a falar português, bem alto, pra pelo menos ele perceber que eu não era americana...

TABLADO: O Departamento de Justiça deteve 75 imigrantes para averiguação e estendeu o prazo para manter suspeitos sob custódia, sem acusá-los formalmente. Já há casos de muçulmanos hostilizados em vários pontos dos EUA. Isso não é um terreno fértil para o preconceito contra o estrangeiro, que já faz parte da cabeça de muito americano?
MARIA ALICE: Bastante. E agora isso faz parte do sentimento de vingança pelo qual algumas pessoas estão tomadas. Os jornais mostram todos os dias mais e mais “crimes de ódio” praticados por americanos contra pessoas confundidas com árabes. Mas o governo disse que vai punir muito firmemente esses atos. E vai cumprir essa promessa, tenho certeza.

TABLADO: Um brasileiro já foi espancado aí em Nova York porque o confundiram com um muçulmano. Serão tempos difíceis para os brasileiros aí, sejam visitantes ou moradores?
MARIA ALICE: Na verdade, o caso do Hermes foi desmentido. A confusão ali foi outra. De qualquer forma — e isso não comecei a achar agora — acredito que o brasileiro leva uma desvantagem básica: ser parecido com todo mundo. Por isso que um passaporte brasileiro roubado, por exemplo, vale uma nota. Porque poderia pertencer a qualquer um, oriental, árabe, italiano. Junta-se a isso, o fato de o americano médio não conseguir distinguir muito fisionomias ou línguas. Isso, em tese, poderia tornar o brasileiro vulnerável. Conheço uma moça brasileira que foi agredida em Washington na época da guerra do golfo porque a gangue que a atacou achava que ela era iraniana. E ela é quase tão branquela quanto eu. Mas estes são casos isolados. Não acho que isso torne-se realmente uma ameaça, nem para brasileiros visitantes, nem pra moradores.

TABLADO: O governador do Estado de Nova York, George Pataki, já fala em estabelecer a pena de morte para terroristas, em Nova York.
MARIA ALICE:
Não acho que a morte seja castigo suficiente pra quem comete crimes bárbaros como esse. Mas essa é uma opinião pessoal.

TABLADO: Falemos agora do sentimento de vingança. O povo aí quer guerra mesmo?
MARIA ALICE: O americano está com seu sentimento maior — o orgulho — muito ferido. Quer ir à forra do jeito que for, desde que o massacre nas torres não fique impune. Pra mim, neste momento, a palavra guerra já está mais banalizada que “eu te amo” em novela da Globo. Só que ninguém está pensando muito bem nas conseqüências reais de um conflito. E pra complicar mais a situação, o discurso de George W. Bush está parecendo roteiro de filme do John Wayne. Outro dia vi numa banca de jornal uma foto do Bin Laden com um letreiro “WANTED”, naquelas letras típicas de filme de mocinho. Não acredito que essa seja a melhor forma de tratar um possível confronto que pode pôr em jogo a vida de mais um bocado de civis.

TABLADO: E ninguém tem medo de uma Terceira Guerra Mundial? Você tem esse medo?
MARIA ALICE: Senti nas primeiras horas, durante e logo após os ataques. Mas agora, e diante da disponibilidade de praticamente o mundo inteiro não concordar com um conflito maior, não acredito que essa situação se estenda a esse ponto.

TABLADO: Por aqui, até um rabino, o Henry Sobel (presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista) andou dizendo que o “mal absoluto só pode ser vencido pela força bruta”. É a luta do bem contra o mal?
MARIA ALICE: Com todo o meu respeito aos evangélicos, isso parece discurso da Igreja Universal. Nesse caso não há mocinho ou bandido absoluto. Claro que o que fizeram com as pessoas que estavam nas torres no dia 11 é de uma maldade incomensurável. A cidade está vivendo um velório coletivo. Por toda parte você vê cartazes com as fotos de pessoas desaparecidas. Nas esquinas e em frente às estações do corpo de bombeiros há verdadeiros altares com flores, velas e fotos de gente que morreu tentando salvar quem estava preso nas torres. A quantidade de fotos gente jovem desaparecida, muitas junto dos filhos pequenos é assustadora. A crueldade com que racharam o coração de uma quantidade imensa de famílias americanas não tem perdão. Mas daí a acreditar que os Estados Unidos representam o bem absoluto...

TABLADO: A mídia daí parece ter assumido esse sentimento de que dane-se a diplomacia e de que é preciso responder com chumbo grosso ao orgulho ferido. Desde que o George W. Bush falou em primeira guerra do novo século, todo mundo comprou a idéia. A CNN fala abertamente em “America on War”.
MARIA ALICE: Não concordo inteiramente com o “dane-se” não. Acho que desde aquela seqüencia de foras que a TV norte-americana deu nas eleições do Bush, eles ficaram mais cuidadosos com o que botam no ar. Quem está pregando a resposta com chumbo grosso é a própria turma do Bush. Você e eu somos jornalistas e sabemos que não dá pra ficar mascarando um sentimento desses vindo do governo. Como não publicar que “o país está em guerra” se essas foram palavras do próprio presidente? Acho que quem não está nem aí para a diplomacia é o próprio Bush. Onde já se viu ir pra televisão dizer que quer o cara vivo ou morto? Claro, não sejamos ingênuos a ponto de ignorar que a CNN e as outras redes podem estar pondo mais lenha na fogueira. Lógico que estão. Estão ajudando a incitar a vingança... e o americano é muito orgulhoso, patriota, compra essa idéia com muita facilidade.

TABLADO: Vi o Dan Rather outro dia (um jornalista veterano e respeitado da CBS) no David Letterman, aos prantos, elogiar o Bush e falar em vingança. É por aí?
MARIA ALICE: Aquilo foi patético. Não gosto do David Letterman, não vejo o programa dele, tenho horror das piadas que ele conta. Mas naquele dia, quando vi os absurdos que o Dan Rather estava dizendo, confesso que parei pra ver. Ele teve o desplante de dizer que o que motivou os atentados às torres fora a inveja. Ora, pelo amor de Deus... o pior é que o americano coitadinho lá do Alabama, de Utah, que não tem a menor idéia dos verdadeiros motivos pelos quais o World Trade Center e o Pentágono foram atacados, acredita... Se bem que há quem diga que a choradeira foi encenação. Não duvido.

TABLADO: Aliás, o David Letterman foi ovacionado quando disse que, pra ele, Nova York continua sendo a maior cidade do mundo. Você concorda com ele?
MARIA ALICE: Completamente. Não que Nova York seja a única grande cidade — apesar de os nova-iorquinos acharem isso sim — mas a Grande Maçã é grandiosa... Veja bem: aqui você tem uma grande concentração das nossas, digamos, necessidades básicas. Você tem grandes museus, grandes lojas, grandes peças de teatro em cartaz... e o maior centro financeiro do mundo. Portanto, apesar da arrogância da população, dessa mania de achar que tudo que não for de ou em Nova York é “resto”, não dá pra não admitir que Nova York é maior cidade do mundo.

TABLADO: Da maneira como eu vejo, e tenho lido, o George W. Bush, um presidente eleito aos trancos e barrancos (com aqueles votos sumidos da Flórida), está tentando matar três coelhos com uma cajadada só: vingar os americanos, tirar o país da recessão impulsionando a indústria bélica (sua amiga desde a campanha) e ganhar legitimidade. Com isso, está revivendo a guerra fria, dividindo o mundo em dois blocos: os que apoiam incondicionalmente os americanos e os que não apoiam. O secretário de Comércio, Donald Evans, chegou a dizer que o país que não apoiar os EUA vai sofrer sanções econômicas. Que diabos é tudo isso?
MARIA ALICE: Concordo em parte. Financeiramente, o país já andava muito bem e daqui pra frente vai encarar uma recessão muito, muito feia. Não falo só em Wall Street não. Outros segmentos da economia estão apavorados com as conseqüências dos ataques. Os turistas estão se mandando de Nova York. Os restaurantes, principalmente naquela área do Times Square, estão vazios. Os hotéis estão trabalhando, em média, com só 25 por cento da ocupação. Só essa semana, cinco musicais da Broadway estão saindo de cartaz, fora outros tantos que estão ameaçados de ter o mesmo fim. Isso significa que os atentados não rebentaram a cidade só fisicamente. Rebentaram com o coração da população, que não se conforma com tanta gente morta. Rebentaram com o coração financeiro, e como conseqüência de tudo isso, estão prejudicando imensamente o turismo.

TABLADO: Onde você e seu marido estavam no momento dos atentados?
MARIA ALICE: Estava tomando café da manhã em casa, quando abri O Globo na internet. Lá estava a foto das torres. Uma já estava em chamas. Me apavorei, mas achei que tinha sido um acidente. Tentei abrir o New York Times, mas o site já estava congestionado. Aí liguei a televisão. Nisso a outra torre já tinha sido atingida. Fiquei tão atordoada que não me dei conta imediatamente que aquilo poderia ter sido um ataque terrorista. Dali pra diante, comecei a escrever para as pessoas no Brasil para tranqüilizá-las, dizer que o atentado tinha sido em Downtown e como eu moro em Uptown, não tínhamos sofrido nada. Mas foi difícil convencer a família e os amigos de que estava tudo bem mesmo. Não parei de receber e-mails o dia todo, até porque as linhas telefônicas estavam — algumas ainda estão — comprometidas. Meu marido é diplomata, mas não tinha chegado a ir à ONU naquela manhã. Ainda era muito cedo e o prédio foi evacuado muito antes das reuniões começarem. Com o transporte coletivo interditado, ele andou 40 quadras até chegar em casa. No caminho viu as pessoas atordoadas, cabisbaixas, chororosas, ainda sem entenderem muito bem o que tinha acontecido.

TABLADO: Depois disso vocês já passaram perto da área dos ataques?
MARIA ALICE: Ainda não. O acesso à região abaixo da Rua Canal ainda é difícil e restrito. Tem muita poeira e resíduos de amianto no ar. Nos dias seguintes ao ataque, até no Times Square tinha gente andando de máscara. O ar não está ruim em toda a cidade, mas lá embaixo não sei se é bom arriscar. Além disso, o prefeito Rudy Giuliani pediu a todos que se mantivessem o mais longe possível daquela área. Então estamos evitando.

TABLADO: Você ainda tá com medo de novos ataques?
MARIA ALICE: Sim e acredito que apesar de a cidade estar voltando a sua rotina, as pessoas não sabem bem o que esperar em caso de retaliação. E mesmo que não haja mais nenhuma reação terrorista, acredito que todo mundo ainda vai ter receio por bastante tempo.

TABLADO: Como isso muda (se é que muda) sua rotina de vida, de trabalho...?
MARIA ALICE: Mudar, muda. Como trabalho numa produtora de televisão e nossa equipe é minúscula, temos tido trabalho triplicado. Na primeira semana foi uma correria alucinada. E não dava pra ficar pensando muito se corríamos algum risco. Só rezávamos pra que o edifício não fosse evacuado. Um dos prédios da Nasdaq, nosso vizinho, assim como outros no Times Square foram esvaziados por ameaça de bomba. Conosco, felizmente não aconteceu nada. Se acontecesse, só complicaria mais a nossa vida. Mas assim como o resto da população, você não pode se deixar abater totalmente pela situação. Você precisa tocar o barco adiante e tentar fazer com que os acontecimentos influenciem o menos possível a sua rotina.

TABLADO: Já deve ter gente em Hollywood pensando em fazer filme com essa tragédia. Que nome você daria a ele?
MARIA ALICE: Eu tinha pensado nisso também. Mas a essa altura, tenho minhas dúvidas. Pelo menos por enquanto. Está todo mundo muito traumatizado. Olha quantos filmes foram cancelados por falarem em terrorismo ou nas torres. O norte-americano está profundamente ferido. E acredito que nem a necessidade maior deles, que é fazer dinheiro, vai falar mais alto dessa vez. Em todo caso, se alguém tivesse o mau gosto de produzir alguma coisa com esse tema e coubesse a mim dar o nome ao filme, talvez o chamasse com o título de uma matéria que saiu na revista Time do dia 14 de setembro: If You Want To Humble An Empire, ou “Se você quiser humilhar um império”. Claro que com esse nome, o diretor não seria norte-americano.

TABLADO: Nova York algum dia será a mesma?
MARIA ALICE: Que a cidade vai se reerguer, disso eu não tenho dúvida. A população está se mobilizando para isso e o prefeito Giuliani tem dado uma força imensa pra que as pessoas e as empresas consigam minimizar o sofrimento e o prejuízo. Mas Nova York já não é mais a mesma desde o minuto seguinte ao primeiro ataque. Num aspecto geral, porque os americanos perceberam que não são os invencíveis que sempre pensaram ser. Depois, se você avaliar individualmente, onde está a arrogância, a “atitude” nove-iorquina? Pode ser que essa “paz” seja momentânea, frutos do transe em que a cidade se encontra. Mas não duvido que os acontecimentos vão mudar a postura de muita gente.

TABLADO: O que você diria para um brasileiro que (ainda) tem vontade de visitar NY?
MARIA ALICE: Espere a poeira baixar (literalmente) e venha. Venha sim. Nova York vai se reerguer e não vai demorar muito. E depois, apesar do skyline não ser mais o mesmo, não duvido que daqui pra frente Nova York não se torne melhor ainda do que era antes da ruína das Torres Gêmeas.


Publicado em 21 de setembro de 2001.

sábado, 15 de março de 2008

Lixo é uma questão de cultura?

Certa vez, quando acabava de me mudar para Brasília, há uns bons oito anos, ainda ignorando a distância a pé entre o Conjunto Nacional e o Setor de TV Sul, resolvi arriscar uma caminhada. Munida de um providencial coco gelado, enquanto sorvia o líquido, fui atravessando tortuosas trilhas de areia vermelha que cortavam o coração da capital. No fim, nem tão má fora a caminhada, apesar de não muito cômoda. E não pelo caminho irregular, mas porque até chegar ao meu destino não consegui me desfazer da casca da fruta... Ingênua fui em pensar que poderia encontrar uma lata de lixo no meio do cerrado. Afinal de contas, por que alguém teria a brilhante idéia de espalhar lixeiras pelo meu caminho, se o projeto de Lucio Costa não previa que alguém se atrevesse a andar por ali? Certamente, se a consciência não me pesasse, seguiria o exemplo de outros transeuntes e faria meu depósito do fruto seco ali mesmo, no meio do areão.

O que espanta é, ao andar pelas ruas de Tóquio, onde há tempos não existem espaços para trilhas de terra, acontecer algo semelhante. Felizmente, os cocos verdes não estão disponíveis na cidade, porque se estivessem, e precisássemos nos desfazer da casca em plena caminhada, não encontraríamos lixeiras para jogá-las fora. Só que, ao contrário do que o óbvio possa sugerir, uma vez que milhões de pessoas circulam pela cidade, fumam seus cigarros, comem seus bolinhos de arroz com alga, tomam café e chá verde de latinha, nenhum resto se vê pelo chão. Absolutamente nenhum. A verdade é que, numa cidade de 20 milhões de habitantes que geram 10 por cento das 50 milhões de toneladas de lixo produzidas no país inteiro, tem-se a consciência de que lugar de lixo, por menor que ele seja, é mesmo na lixeira. E como elas não estão à mão, nem nas mais largas avenidas, o negócio é carregar a porcaria na bolsa, nos bolsos, onde for. Atirar no chão, nunca.

E como tudo no Japão, até a coleta seletiva de lixo tem seu ritual. Se teve de carregar o lixo até em casa, não pense que vai despachá-lo imediatamente. Aqui o entulho tem dia e hora certos pra irem pro depósito. E se o caminhão de coleta de resíduos orgânicos passa às oito da manhã da segunda-feira, nada de deixar os sacos na frente de casa no domingo à noite, ou você será o próximo herói da comunidade de corvos local. Além do mais, neste verdadeiro quebra-cabeças da reciclagem, o dia de jogar fora garrafa de plástico não é o mesmo de se livrar de jornal velho, que, por sua vez, é armazenado separado do papelão e da revista velha. E ai de você quando o lixeiro perceber que o lixo esperando pela coleta está “errado”. O autor do “equívoco”, além de ficar com a porcaria na frente de casa por mais tempo, ainda leva um bilhetinho desaforado por cima dos sacos. Esses, aliás, que além de duplos, têm de ser cobertos com uma rede de náilon, para evitar que os corvos estraçalhem o plástico e emporcalhem a rua toda. Porque aí, a confusão pode ser ainda maior. Falsos moralismos-de-época-de-eleição à parte, isso é o que podemos chamar de verdadeira lição de cidadania.

Publicado em 27 de setembro de 2002.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Leo entre os japas

Japonês que se preza é organizado, educado. Adepto da boa higiene a ponto de causar inveja ao suíço mais fanático. Japonês também adora uma fila. Se organiza pra atravessar a rua, pra entrar no metrô. Diante de uma exposição de obras de arte, não poderia ser diferente. Seja numa galeria minúscula, num subsolo obscuro, ou num grande museu de arte, lá estarão eles, esperando pacientemente a vez para admirar o que quer que seja.

Mas e se a obra em questão for um Leonardo da Vinci, uma das poucas peças do mestre em exibição no mundo inteiro? Aí vale tudo, até perder uma manhã viajando, só para ver A dama com um arminho, obra do mestre florentino, datada de 1490. O quadro faz parte do acervo do Museu da Princesa Czartoryski, de Cracóvia. E pela primeira vez na história atravessa Europa e Ásia para aportar em terras nipônicas. Está no Museu de arte de Yokohama, cidade onde será disputada a final da Copa do Mundo, no dia 30 de junho.

A Dama representa a figura de Cecilia Gallerani, amante do mecenas de Leonardo, o milanês Ludovico Sforza. A peça reina absoluta, numa galeria exclusiva. E apesar da disciplina dos visitantes, é preciso um guardinha mal-humorado para dispersar a multidão.

Recebida com vivas e urras pela crítica japonesa, não faltou quem desmerecesse os esforços do Museu de Yokohama. Houve até quem dissesse que a Dama ali faz o mesmo papel de um naco de bom queijo numa ratoeira. É claro, apesar da boa vontade dos locais, é preciso sim um bom motivo para sair de Tóquio e viajar 40 quilômetros, correndo o risco de ter de enfrentar um trânsito infernal. A curadoria da exposição, contudo, não se importa em ser ou não “armadilha”. “Quem vier vai poder ver outros trabalhos maravilhosos como A virgem com a criança, de Vincenzo Catenas”, diz Hideko Numata, da equipe de curadores da mostra. Mas diante o brilho da Lady, o restante da exposição fica sim ofuscada. Mesmo uma peça de Carlo Crivelli, o Santo Antônio de Abbot e Santa Lúcia não consegue atrair tantos curiosos quanto a Lady.


A coleção fica exposta em Yokohama até 7 de abril. É constituída de 108 peças entre pinturas, tapeçarias, manuscritos e objetos, alguns deles datados do remoto século 11.

Publicado em 16 de março de 2002.

Foto de divulgação

Asakusa, Tóquio: Buda e samba no pé

Num dia qualquer, lá pelo ano 628 d.C., quando jogavam suas redes no rio Sumida, dois pescadores encontraram uma estátua de ouro de Kannon, a deusa budista da misericórdia. Em louvour a ela, os dois irmãos decidiram construir um santuário. Mal sabiam eles que mil e tantos anos mais tarde, essa pequena construção viraria o Senso-ji, o maior, mais sagrado e espetacular templo de Tóquio.

E não por menos, o Senso-ji fica em Asakusa (lê-se Assakssa) um dos pontos mais tradicionais de Tóquio. Com o passar dos anos, a construção dos pescadores foi se espalhando e ao redor dela portões e outros pequenos templos foram sendo edificados. Escapando incólumes a vários terremotos, as construções, entretanto, não resistiram aos bombardeios da Segunda Guerra. Quase tudo foi destruído, mas hoje os prédios estão novamente no lugar, reconstruídos como mesmo estilo Edo.

Entra-se no templo pelo Portão do Trovão, ou Kaminarimon. A imensa lanterna de três metros de comprimento, bem no meio da passagem, é um dos principais símbolos da cidade. O portão leva à Nakamise-dori, um corredor com mais de 100 barracas nas quais encontra-se um pouco de tudo que há no Japão: comidas tradicionais — como o Kaminari Okoshi, ou os biscoitos do Trovão — quimonos, leques, sombrinhas e bonecas.

No Fim da Nakamise-dori, chega-se a outro portão, o Hozomon, onde está guardado um tesouro com vários sutras, as regras de moral chinesas do século 14. Alguns metros adiante está o pavilhão principal, com um laminado a ouro e a imagem original de Kannon.

Mas os poderes divinos do templo — como tirar a sorte e curar doenças — estão fora do pavilhão principal. Para ler a sorte no o-mikuji, basta sacudir uma caixa de madeira cheia de palitos. Retira-se um. Gravado no palito há um número, que corresponde a uma gaveta. Dentro dela estará a sorte. Se o papel indicar má-sorte, pode-se tentar evitá-la amarrando o papel numa árvore. No joukoro, ou queimador de incenso, basta “pegar” um pouco da fumaça que sai de uma enorme lareira redonda e tocar a parte do corpo adoentada. Acredita-se que é cura na certa.

Engana-se quem pensa que só de crenças budistas vive Asakusa. À direita do Senso-ji há um santuário Xintoísta dedicado aos pescadores que encontraram a estátua de Kannon. É de lá que começa o maior festival anual da cidade, o Sanja Matsuri. No final de agosto, no entanto, apesar do nome, a festa em Asakusa é bem brasileira: carnaval de rua com muita ginga e desfile de escolas de samba.
Publicado em 16 de agosto de 2002.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Pequim: A Cidade Proibida

Uma cidade desenhada ao longo de um eixo central cortando o terreno de Norte a Sul. Uma linha ligando prédios governamentais. Não, não me refiro a Brasília, mas a uma cidade assim planejada, só que mais ou menos dois mil anos antes: Pequim. Uma cidade que cresce literalmente do dia para a noite, mais ou menos como todos os grandes núcleos urbanos chineses.

Só que em Pequim os contrastes são gigantescos. As ruelas vão dando lugar às grandes avenidas. Os pequenos cortiços e casinhas tradicionais vão sendo substituídos por arranha-céus envidraçados. De um lado, a Cidade Proibida e o Templo do Céu. De outro, os grandes hotéis de cadeias estrangeiras. No meio da selva de concreto, por entre os guindastes, mais de 14 milhões de chineses que ainda não entenderam muito bem que a China entrou no mundo globalizado.

Pequim se divide entre o velho – duas seções antigas no centro da cidade – e o novo, uma área residencial, industrial e institucional, construída pricipalmente depois de 1949. Muita história que a Trilha Revista vai contar, a partir desta edição.

No primeiro trecho da nossa viagem, passamos pela parte antiga da Pequim, que consiste em uma cidade interna quadrada, construída entre 1409 e 1420, cercada por uma muralha de 24km de comprimento e 15m de altura. No centro, a Cidade Proibida, que foi assim chamada porque a ela não era permitido o acesso de cidadãos comuns, afinal de contas, a família imperial viveu ali entre 1421 e 1923. O último imperador, Aisisn-Gioro (Henry) Puyi foi forçado a abdicar em 1912, mas pôde ficar no Palácio até bastante tempo depois. Hoje, o complexo abriga, entre outras fantásticas instalações, o Museu do Palácio, fundado em 1925, mas que só foi aberto ao público em 1949.

De todas atrações turísiticas chinesas, a Cidade Proibida é a mais visitada. Segundo o governo chinês, mais de sete milhões vão o Palácio todos os anos, mesmo com a restauração que começou em 2002 e só deve terminar em 2020. Até lá, volta para o lugar o que – através dos séculos – foi saqueado ou destruído pelo fogo.

Publicado em 11 de dezembro de 2004.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

China de todas as crenças

de Pequim

Liberdade de credo é direito garantido pela constituição chinesa. Salvo em tempos de tensão política, como na Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, ou quando se fala em Budismo Tibetano, a China se mantém entre os países com maior diversidade de culto religioso – ao contrário do que se pode imaginar à primeira vista. Vão das crenças tradicionais, como o confucionismo e taoismo passando pelo budismo, islamismo e as mais diversas formas de cristianismo.


Em Pequim estão dois dos dez mais fantásticos templos chineses. O Tian Tan, ou Templo do Céu, concluído em 1420, simboliza a relação entre céu e terra – o mundo de Deus e o mundo humano, centro da cosmogênese chinesa – além do papel dos imperadores nessa relação. Parte do Templo do Céu, o Qinian Dian, ou “salão de orações para a boa colheita” é uma edificação circular feita em madeira, sem a utilização de um único prego. Considerada o maior símbolo da arquitetura imperial chinesa depois da Cidade Proibida, foi consumida pelo fogo em 1889, mas no ano seguinte uma réplica do salão de telhado azul de 38m de altura e 30m de diâmetro substituiu a original.

No meio do salão, 28 pilares simbolizando constelações foram arranjados conforme as divisões do tempo: quatro centrais para cada estação do ano; os 12 seguintes, para os meses, e os 12 externos representando as horas do dia. E nessa miscelânea de simbologias, o que mais impressiona é o teto, um caleidoscópio de estruturas pintadas com figuras de dragões e fênices.

Tal como na Europa pré século 20, na China o limite entre religião e governo – principalmente durante as dinastias Ming e Qing – foi bastante tênue. O maior exemplo dessa simbiose é o Templo de Lama, o Yonghe Gong, uma imensa residência que virou templo quando Yongzheng tornou-se imperador e mudou-se para a Cidade Proibida.

Yonghe Gong foi concluído em 1694 e convertido em mosteiro de lamas em 1744. Sob os telhados amarelos, há hoje uma coleção de queimadores de incenso, alguns deles datados do século 18, além de uma urna usada em rituais durante o reino de Qing Qianlong, imperador que determinava reencarnações de Dalai Lama, o líder da seita Budista no Tibete.

Publicado em 5 de fevereiro de 2005.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Bem por trás do exército de terracota

de Xi’an, China

Quem não ouviu falar nos guerreiros de Xi’an expostos na Oca, em São Paulo, no ano passado? O que nem todo mundo sabe, é que por trás do fantástico exército modelado há mais de 2 mil anos para guardar a tumba do imperador Qin Shi Huangdi, existe muito mais do que tais estátuas de argila cozida.


Escondida no final de uma ruela — na qual vendedores vestidos como manda a tradição muçulmana comercializam de tudo — está um dos tesouros arquitetônicos da cidade. Qingzhenssi, a Grande Mesquita, foi fundada em 742 d.C, em plena dinastia Tang, época em que Xi’an era chamada Chang’an (em cinês, “paz eterna”) e servia de base militar e comercial para o conturbado controle chinês da Rota da Seda. A Mesquita, em seus pavilhões, torres e plataformas, mistura estilos tradicionais da arquitetura Han e Islâmica: telhados de pontas retorcidas, típicos chineses, mas de telhas azul-esverdeadas, pouco comuns na arquitetura local. Um dos pontos mais tranqüilos da cidade, Qingzhenssi é também o centro da comunidade islâmica que reside na cidade há mais de 1.200 anos.

Outro ponto alto da cidade (literalmente, pois tem 64 metros de altura), considerado obra-prima da arquitetura, é o Dayan Ta, ou Pagode do “Grande Ganso”, o mais conhecido templo de Xi’an. Construído em 652 d.C, abriga escrituras e as estátuas de Buda trazidas da Índia na dinastia Tang.

Mais afastadas do centro de Xi’an, mas não menos grandiosas, estão as piscinas Huaing, ou as Termas dos “Nove Dragões”. Nestas águas cálidas, ao longo de mais de 3 mil anos, imergiram imperadores, que, através das dinastias iam construindo no local novos nichos para desfrutá-los com suas concubinas. Muito mais tarde, em 1936, foi em um dos pavilhões de Huaing que culminou o Incidente de Xi’an. Negando-se a se aliar ao Partido Comunista Chinês para lutar contra o Japão, o general Chiang Kai-shek optou por lutar contra ambos. Escondeu-se em Huaing para ser então capturado por dois generais nacionalistas. Recuou seu governo para Formosa (Taiwan), onde continuou atuando, dali para frente como presidente da recém-formada República da China.

Publicado em 1º de outubro de 2004.
Foto de Chiang Kai-shek: Governo dos Estados Unidos (Domínio Público)

terça-feira, 22 de maio de 2007

China não. É Xangai

de Xangai, China

Se no final da rua se avistasse uma montanha, seria a Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Se houvesse mais viadutos ainda, seria Tóquio. Se símbolos capitalistas não estivessem tão presentes, até poderia ser a China. Mas é a China. Só que Xangai, ainda que seja o principal centro comercial e industrial Chinês, é a menos chinesa de todas as cidades.


Há mil anos era meramente uma vila de pescadores. Oitocentos anos mais tarde, tornou-se um próspero centro de cultivo de algodão. Com o fim da primeira Guerra do Ópio — entre China e Grã-Bretanha — em 1842, a China foi forçada a abrir Xangai aos britânicos e mais tarde aos franceses, que se instalaram ao norte da cidade original. Como resultado, uma cidade de arquitetura curiosa, culturas misturadas; sem a “dureza” de Pequim, mas que ainda mantém traços notáveis da tradição oriental.
O “Bund”, como é chamada a área às margens do rio Huangpu, é onde se concentra o legado europeu da cidade. Franceses e britânicos trataram de erguer ali prédios em estilo colonial, que abrigaram a alfândega, bancos, hotéis importantes, estabelecimentos comerciais e residências. Nos anos 40 e 50, no entanto, os estrangeiros começaram a deixar Xangai e as mesmas construções viraram escritórios do governo chinês. O Bund do século 21 tem os melhores restaurantes da cidade e uma vista fantástica para o outro lado do Huangpu: Pudong.

Há dez anos, dos terraços do Bund, só se via pântano e campos de arroz. Hoje, Pudong, a margem de lá do Huangpu, tem um dos skylines mais famosos do planeta. Retrato em concreto da nova Xangai, com direito a uma vizinhança poderosa: do maior hotel do mundo — o Jin Mao Tower, com 421 metros — à mais importante bolsa de valores chinesa, a Shanghai Stock Exchange (SSE).

Mas, como estamos na China, também em Xangai o progresso se mescla ao retrocesso de forma assustadora. Do precário Mercado Dongtai (confuso, mas fantástico para quem procura quinquilharias), vê-se os arranha-céus envidraçados que sevem de pano de fundo para centenas de barraquinhas nas quais se encontra de tudo: de porcelanas e lanternas de papel, até objetos da época da Revolução Cultural, muito provavelmente as única mercadoria autêntica que você vai encontrar por aqui. Outro achado, não menos caótico, é o Mercado Xiangyang, só que para roupas de marca, muito possivelmente falsificadas, mas de ótima qualidade e preços absurdamente baixos.

É claro, há os templos e jardins. O mais interessante deles é o Yu Yuan (Jardim do Contentamento). Concluído em 1557, virou residência do Ministro das Punições da Dinastia Ming (1364 a 1644). São dois hectares bem no centro de Nanshi (Cidade Velha) nos quais encontram-se fantásticos pavilhões de pelo menos 400 anos, lagoas, pontes em arco e jardins dentro do jardim. Viagem por um túnel do tempo cercado por um imenso dragão permanentemente a vigiar.


Publicado em 2 de setembro de 2004.

Macau de misturas

de Macau, China

Ao final de uma pequena jornada por entre templos e prédios coloniais europeus, entramos num restaurante decididos a comer bacalhau. Numa das mesas, seu Afonso, o dono, fuma um cigarro:


– O que mudou quando Macau voltou para a mão dos Chineses?, perguntamos a ele, em meio a garfadas do peixe servido à moda Brás.
– Pois voltou? Mas esta terra nunca deixou de ser dos chineses! Responde o português, achando graça.

Contam historiadores que Macau foi ocupada por lusitanos em 1557, quando Chang Tse-Lac, pirata conhecido na região, foi derrotado em mares chineses com a ajuda dos portugueses. Com isso, foi concedido aos europeus o direto às terras macaenses, criando o primeiro entreposto comercial (depois cultural e religioso) entre o ocidente e o oriente.

Mais de 400 anos depois, já de volta às mãos orientais, mas como Região Aministrativa Especial da China, praticamente só o que sobrou de Portugal por aqui foi o idioma. Até nas fachadas mais modestas, os letreiros são bilíngües. Mas não as pessoas. Bem lembrado, seu Afonso. Essa terra realmente nunca foi portuguesa.

Os macaenses antigos, de boa vontade, chegam a arriscar que a cidade parece Hong Kong de décadas atrás. Diria eu que mais lembra o decadente da HK de hoje. Em Macau, a arquitetura colonial recém restaurada se mistura a prédios mal conservados nos quais amontoa-se uma população local que, depois de muito tempo, vê uma luz no fim do túnel da economia local. A instalação de cassinos, alguns deles de grandes cadeias norte-americanas geram mais do que emprego: atiçam a ambição dos habitantes do continente, já que o jogo é proibido em território chinês.

Mas não é só o tilintar dos caça-níqueis que tem atraído turistas à península e às ilhas ao redor. O legado de séculos de pura mistura de raças, culturas e tradições está por toda parte. A Igreja de São Paulo, por exemplo, foi desenhada em 1602 por um jesuíta italiano. Com a ajuda de cristãos japoneses (que fugiram de Nagasaki em 1597, quando 26 católicos foram martirizados) a igreja foi construída no topo de um morro no centro da cidade. Em 1835, durante um tufão, a igreja pegou fogo e o prédio nunca mais foi reconstruído. Até hoje resta apenas a fachada de símbolos misturados – a Virgem Maria ao lado de uma peônia (símbolo chinês) e o crisântemo, representando o Japão.

Do outro lado da rua, o Museu de Macau traça, com muita competência, um paralelo das civilizações chinesas e européias, resumindo história, tradições e costumes locais. Mais adiante, descendo a ladeira, uma calçada de pedra portuguesa – lembrando a praia de Copacabana – corta o Largo do Senado. A área é a assim chamada por causa do Leal Senado (atual conselho municipal), um dos prédios de fachada neoclássica, construídos ali no século 19. No passado, sempre que um governador português assumia o cargo, era ali que ele passava a tropa em revista. Mas sem direito a provar do bacalhau do seu Afonso.
Publicado em 31 de julho de 2004.

A capital dos contrastes

de Hong Kong

Vistos do alto do pico Vitória, os arranha-céus brotam da estreita faixa entre a montanha e o mar, desenhado um dos skylines mais fantásticos do mundo. Lá embaixo, entre a ilha de Hong Kong e a península de Kowloon, a enseada que também ganhou o nome da rainha recém coroada quando a China foi forçada, em 1842, a ceder este território aos britânicos por causa da Guerra do Ópio.

Para percorrer 6 mil anos de costumes, crenças, e muita história nada melhor que passar uma tarde no Museu Histórico de Hong Kong, que reconstiui, com precisão, episódios como a própria Guerra do Ópio e da ocupação japonesa, com direito a um passeio pelas ruas da velha cidade. Entre os prédios, todos em estilo europeu, uma loja de de ervas chinesas que permaneceu aberta no centro de HK até 1980.

Fora do museu, entretanto, pouco restou dos 156 anos de colônia. O inglês ainda é língua oficial, mas entre os locais — a maioria chineses da etnia Han — só se fala cantonês. Nas ruas, nada da arquitetura vitoriana. Além dos gigantescos prédios envidraçados — evidência em concreto de que HK ainda é um dos grandes centros financeiros do mundo — só construções antigas, malcuidadas, decadentes. Letreiros de ideogramas imensos. Neons coloridos. E um certo desleixo, típico daquele lado de lá.
Só não há descuido no que tange a culinária. Dizem que a maior concentração de restaurantes chineses do mundo está em Hong Kong. E aí, a parada obrigatória é o Fook Lam Moon, em Kowloon, tido como melhor restaurante de comida cantonesa do mundo. Para os apreciadores de pratos exóticos há abalone, barbatana de tubarão e sopa de ninho de andorinha. O ninho, tecido com a saliva do pássaro é recolhido nos rochedos do sudeste asiático. E é claro, para quem não está disposto a se aventurar na extravagância, os básicos - porco agri-doce, arroz colorido e frango com castanhas já são de comer de joelhos.

Publicado em 9 de julho de 2004.

Quem disse que só os bichos hibernam?

de Stockbridge, Massachusets

Quem vê as árvores do Central Park no inverno, raquíticas e acinzentadas pelo frio, pode custar a acreditar que menos de quatro meses antes aquelas copas estavam cobertas de folhas de todas as cores. Entretanto, o festival de outono em Nova Iorque é uma parcela mínima do que acontece com a vegetação de pelo menos 40 estados norte-americanos. Aqui, as árvores não só se preparam para o inverno, como protagonizam um espetáculo a céu aberto fascinante.

É por isso que entre setembro e novembro, logo antes de ficar insuportavelmente frio, todo mundo pega a estrada para ver o fall foliage, ou a troca de cor das folhas, que formam um gigantesco arco-íris vegetal que encobre as montanhas e enche os olhos de quem passa.

A temperatura e a quantidade de chuva na estação anterior determinam se, no outono, a vegetação vai estar mais ou menos maravilhosa. Quanto mais chuvoso for o verão e mais ensolarados forem os dias de outubro, mais vivas serão as cores. E, em geral, quanto mais bonitas as tonalidades, mais curto é o período entre a troca de cor até a queda das folhas.

As tonalidades e o tempo de duração das melhores cores também podem variar de uma localidade para outra. A Nova Inglaterra — onde começou a revolução que originou a independência dos Estados Unidos da Grã-Bretanha — principalmente a região dos Berkshires, tem certamente o outono mais privilegiado, com cores que vão do amarelo claro ao roxo escuro, passando por todos os matizes de vermelho.

Se você está planejando uma viagem ao nordeste dos Estados Unidos, vale a pena passar alguns dias num dos hoteizinhos charmosos dos Berkshires, principalmente nas cidades de Lenox ou
Stockbridge. A primeira semana de outubro é em geral a mais bonita e mais procurada pelos turistas. Mas pelo menos nessa região, até o final do mês o espetáculo é garantido.

Publicado em 22 de setembro de 2000.

terça-feira, 1 de maio de 2007

Piquenique de primavera*

de Tóquio

Quem tem medo de alma penada que me perdoe. Mas, na primavera da terra do sol nascente, não há lugar mais exuberante do que os cemitérios. No fim de março, início de abril, quando os japoneses saem da toca para ver as cerejeiras floridas — o hanami — os budistas celebram o higan, uma semana de honras aos mortos. Em japonês literal, o termo significa “o outro lado da margem”, ou, para os budistas, o que os espera do outro lado do rio que divide a vida e a morte.

E aí, os locais aproveitam o pretexo para passear pelas alamedas cobertas pelas flores rosadas. Em Tóquio, o cemitério mais visitado durante o higan é o Aoyama-Bochi, o maior da cidade. Desde que o terreno virou cemitério, no final do século 19, mais de 100 mil pessoas já foram enterradas lá.

Agora, já que a beleza da vegetação convida, por que não ficar para lanchar? Não precisa nem trazer a matula de casa. É tão natural que grupos se reúnam para esticar a toalha xadrez no chão, entre os túmulos, que barraquinhas que vendem comida de todo o tipo vão sendo armadas pelas alamedas, assegurando que se a semana é dos mortos, os vivos também são filhos de Buda.
Publicado em 29 de março de 2002.
*Colaborou Yumiko Sakai

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Viagem através dos séculos*

de Kyoto, Japão

Fundada em 794 com o nome de Heian — capital da paz e tranqüilidade — Kyoto foi o centro político, cultural e administrativo do Japão dessa época até o final do período Edo, em 1868. Nesta e na próxima edição de Tablado, vamos percorrer os templos, castelos, caminhos e segredos de uma Kyoto moderna, mas que tanto preserva as milenares tradições japonesas.


Entretanto, antes de começarmos essa viagem no tempo, é preciso que se faça uma pequena observação religiosa: O japonês, é em geral, xintoísta e budista, dependendo da ocasião. As cerimônias de casamento, por exemplo, são, em geral, xintoístas. Os funerais, budistas. Muitos dos locais de adoração estão situados no mesmo terreno, mas nem por isso o japonês confunde as coisas. Os deuses xintoístas são venerados nas jinja, ou santuários. Já Buda está nos templos, cujos nomes são identificados pelo sufixo ji ou dera.

Alguns tão antigos quanto a cidade, os templos de Kyoto estão espalhados por todos os cantos da antiga capital. Uns só têm uma portinha; outros, ocupam vários quarteirões. Entre tantas, uma das construções mais impressionantes é Sanjusangen-do, do século 12. É a estrutura mais longa do mundo e em cujo salão retangular estão perfiladas nada menos que 1001 imagens de Kannon, a deusa da misericórdia. O Ninna-ji — outro ponto alto da rota religiosa de Kyoto — foi construído em 888 e chegou a compreender 60 subtemplos, muitos deles destruídos por terremotos e incêndios que arrasaram a cidade através dos séculos.

Mas a maior atração budista está no alto de uma das montanhas que cercam a cidade. Depois de subir a Kiyomizuzaka, uma rua estreita, cheia de lojinhas que vendem chá verde e bolinho de feijão, chega-se ao Kiyomizu-dera, ao qual milhares de peregrinos vão para beber da fonte sagrada (daí o nome, que quer dizer água pura) e para avistar a cidade da varanda do salão principal, uma das maravilhas da marcenaria japonesa, construída toda em madeira e sem pregos.

Castelos e pavilhões - E quem foi que disse que no século 16 não existia alarme contra espertinhos que tentassem adentrar residências alheias? Pois pelo menos no castelo Nijo (lê-se Nidjô), em Kyoto, construído pelo xogum Ieasu Tokugawa, havia sim. E existe até hoje: é o piso rouxinol, cujas tábuas são encaixadas de tal forma, que quando pressionadas, reproduzem um ruído parecido com o do passarinho, chamando a atenção de quem estiver por perto.

Na época, o castelo Nijo representou o máximo do poder e da riqueza. Curiosamente, foi nesse mesmo castelo que o último dos Tokugawas abdicou, já na segunda metade do século 17. No chão, só há madeira e tatame. É possível visitar as acomodações, mas quem não descalçar os sapatos, como faria em qualquer residência japonesa, não entra. As paredes são cobertas pelas maiores pinturas de paisagens, pássaros, flores e tigres da escola Kano. Rodeados pelos motivos bucólicos estão réplicas dos daimyo, os senhores feudais, devidamente curvados, prestando homenagens a Tokugawa.

Tão impressionante quanto o castelo Nijo é o Kinkaku-ji, o Pavilhão Dourado. Construído por um dos xoguns Ashikaga, virou templo depois da morte de seu empreendedor, que aos 37 anos abriu mão de seus deveres oficiais para tornar-se sacerdote. Para chegar ao Pavilhão Dourado, trilha-se caminhos tipicamente japoneses, de árvores cuidadosamente aparadas e de troncos retorcidos. No meio do terreno, um lago e o castelo, cujos três andares são inteiramente folheados a ouro.

O Ginkaku-ji, ou Pavilhão de Prata, no outro extremo da cidade, serviu de retiro ao xogum Yoshimasa, neto de Ashikaga. Em homenagem ao avô, Yoshimasa decidiu cobrir o Ginkaku-ji de prata, mas teve de desistir da idéia por causa da guerra civil de
Ônin, a qual acabou deixando Kyoto praticamente em ruínas.


Publicado em dezembro de 2002 -
*Em duas edições de Tablado.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Fugindo do frio da Grande Maçã

de Nova York

O primeiro inverno que você passa em Nova York é lindo. Quando começa a nevar é como chegar à Disney World. No segundo inverno na cidade, você começa a achar que o frio não precisava durar de novembro a março. Só um white Christmas, ou um "dezembro branco", como eles dizem, pra dar aquele clima de Natal, já seria o suficiente. Na sua terceira temporada em Manhattan, as coisas começam a ficar críticas. Você demora pelo menos um mês para admitir que se não usar luvas seus dedos vão cair de frio e quando os termômetros voltam a chegar aos 10ºC você tem certeza absoluta de que pode sair de camiseta e short. De que vai se esparramar na grama do Central Park e tomar aquele bronze. No desespero, ou você se conforma, ou sai da cidade.


E se o negócio for ficar em território norte-americano, não é porque você está em busca de ares mais cálidos que vai radicalizar e acabar em Miami. É claro que a temperatura lá estará muito mais agradável, mas falta de criatividade (e até de bom gosto) tem limite. Por que não go west? Afinal — apesar de os nova-iorquinos ignorarem este fato — há sim o que fazer em outros estados da Nação de Tio Sam. Por isso, nesta e nas próximas edições vamos dar um giro pelo Parque Nacional do Grand Canyon, no Arizona, passando por Las Vegas, no estado de Nevada, chegando à ainda psicodélica São Francisco, na Califórnia.

Chegando ao Arizona de avião, o resto da viagem pode ser feito por terra. O caminho, é claro, você escolhe. Tanto pelas freeways que chegam a dar sono, de tão lisas e retas que são, quanto pelos caminhos mais sinuosos, inclusive passando pela famosa Route 66.

Construída nos anos 20 como parte do programa nacional de desenvolvimento de rodovias do governo norte-americano, a 66 simbolizou o espírito de independência da era do automóvel. A estrada ligava Chicago a Los Angeles, e hoje, só quem passa por lá é curioso ou quer matar as saudades. No Arizona, a paisagem árida enche os olhos, mas em alguns trechos em que a 66 ainda não foi engolida pelas highways, há pouca sinalização e pouquíssimos serviços. Não perca, na próxima edição, a chegada ao Grand Canyon.

Publicado em 10 de março de 2001.




Rei Arthur, pirâmides e muito dinheiro
de Las Vegas

O que seria de Nevada se não fosse Las Vegas? Certamente nada no meio de coisa nenhuma, ou, como dizem os americanos, o boondocks (lê-se búndax). Graças aos cassinos mais famosos do mundo, no entanto, o estado pode se queixar de qualquer coisa, menos de falta de dinheiro. Las Vegas, uma das cidades que mais cresce no país, chega a receber 32 milhões de visitantes por ano.

As duas áreas principais de Vegas são o Strip – ou o Las Vegas Boulevard South - e Downtown, onde a cidade começou a se formar mas que hoje está bastante decadente. Nos trechos sul e central do Strip encontram-se os melhores hotéis, restaurantes e cassinos. Mas, se você espera entrar num hotel luxuosíssimo para ver gente bonita e elegante, lembre-se que o tanto de grana que circula por lá pode ser inversamente proporcional à beleza dos freqüentadores: LV é, certamente, o lugar onde se encontram mais indivíduos sem charme por centímetro quadrado do país.

Poucos, no entanto, vão à cidade para ver gente. O negócio é abrir a mão e passar horas nas mesas de bacará, pôquer, roleta. Jogando dados ou torrando moedinhas nos caça-níqueis. Agora, se você acha que está em seu dia de sorte, não vá se abancando na mesa do primeiro crupiê. É necessário ter o mínimo de conhecimento sobre o jogo e começar pelos que têm apostas mínimas pequenas. Nesses casos, os cassinos de Downtown são os mais indicados.

Apesar da fama dos jogos de mesa, apostas nos caça-níqueis são as mais freqüentes. Há 115 mil máquinas do tipo na cidade e a procura é tanta, que elas rendem mais que as mesas de roleta, blackjack e dados juntas. Entretanto, se você acha que vai fazer fortuna só baixando alavancas, saiba que não existe receita mágica para ganhar nos caça-níqueis. Apenas formas de perder dinheiro mais lentamente. Uma dica é observar as fileiras de máquinas. Cada uma funciona com um timer, marcando o tempo que a máquina leva para soltar dinheiro. Se a fila estiver vazia, é porque você vai precisar pôr mais moedas até ganhar alguma coisa.

Agora, para quem não pretende passar o tempo todo enclausurado num cassino, uma boa idéia é alugar um carro. Você terá maior mobilidade pela cidade e arredores, e não terá dificuldade em arranjar estacionamento. Todos os grandes hotéis têm garagens imensas com manobrista, que além de ficarem satisfeitos com qualquer um dólar de gorjeta, ainda trazem o carro com o ar-condicionado ligado – perfeito para os dias de agosto, quando a temperatura chega facilemente a 41°C.

Aproveitando a mordomia do valet parking, pode ser bem divertido ir de hotel em hotel, apreciando a falta de gosto na decoração “temática”. E aí, prepare-se para encontrar de tudo: de gigantescos lustres medievais, passando por pirâmides, esfinges e um canal com gôndolas e gondoleiros cantores. E o cúmulo da inautenticidade na reprodução de uma cidade pode estar no Hotel New York-New York. Das várias célebres fachadas nova-iorquinas que compõem a frente do hotel, pode-se reconhecer o Empire State, o Chrysler Building e uma Estátua da Liberdade. Mas de onde tiraram prédios cor-de-rosa-choque uma montanha-russa cercando a Big Apple lasveguense é realmente uma incógnita.

Publicado em 13 de abril de 2001.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Entre os cáctus, no lombo da mula

do Grand Canyon, Arizona

Primeiro você imagina que está dentro de um desenho animado ou no meio de um filme de John Wayne. Por todos os lados, só areia, rochedos e cáctus gigantes. Depois, a vegetação rasteira e escassa lembra os caminhos do Planalto Central. Um pouco mais adiante, se esquecer que está no meio do Arizona, você terá a certeza de que vai parar nos Alpes suíços. De jeito nenhum. Em pouco mais de quatro horas de estrada, saindo de Phoenix, no Arizona, você chega a um sítio sagrado constituído por camadas rochosas que começaram a se formar há 2 bilhões de anos: o Grand Canyon.

Se o plano é incluir o canyon na sua programação de férias, não se esqueça que é necessário fazer reservas com bastante antecedência, principalmente se a viagem for programada para os meses entre abril e outubro. Segundo estimativas da administração do Parque Nacional do Grand Canyon, em apenas um dia de verão, cerca de 6,5 mil carros invadem as dependências do parque para ver a paisagem espetacular do canyon.

Mas não é só o panorama constituído por rochas cinza, laranja e verde que pode tirar seu fôlego. Quem estiver disposto a pôr a mochila nas costas e desafiar grandes variações térmicas (lembre-se que o clima do Arizona é desértico), pode seguir uma das trilhas do parque e acampar dentro do canyon. O passeio, no entanto, pode torturar os mochileiros de primeira viagem. As descidas machucam os joelhos e as subidas são verdadeiros testes de resistência cardíaca. Já os escolados preferem as trilhas que levam a pontos como North Kibab, South Kibab ou Bright Angel, que são bem sinalizadas e regularmente patrulhadas.

Outra aventura bastante popular entre os visitantes é o passeio de mula. Tanto que as reservas para dezembro de 2002, por exemplo, começaram a ser vendidas em janeiro de 2000. Nem o preço de US$ 100 por mula ou os 20 quilômetros de viagem no lombo do animal desencorajam os viajantes.

O Canyon é dividido em duas margens. Entre elas, passa o rio Colorado. A margem Sul (ou South Rim), fica aberta o ano todo, pois as temperaturas são um pouco mais amenas que na margem Norte (North Rim). Na primavera, a máxima na margem sul varia entre 15 e 21ºC. No verão a temperatura chega aos 29ºC. É na margem sul que se tem a melhor vista do pôr-do-sol, no Lipan Point, e onde se faz o melhor passeio de bicicleta, pela West Rim Drive. Na margem norte as temperaturas são mais severas e por isso essa parte do parque só pode ser visitada entre maio e outubro. Tente planejar sua viagem para antes de julho e depois de agosto. O inverno, apesar das noites

congelantes, é a melhor época do ano para se visitar o Canyon. Com um pouco de sorte, dá para ver a paisagem, fazer esqui e boneco de neve. E dos grandes.

Publicado em 7 de abril de 2001.

Não só sobre as ondas se vive na Califórnia

de São Francisco

Suba os Estados Unidos de carro, costeando o Pacífico. Passe por Monterey e Half Moon Bay. A 45 quilômetros ao norte dali está a cidade da Baía, dos hippies e do rock psicodélico dos anos 60. Da ponte Golden Gate, dos bondes e das casas em estilo vitoriano por sobre as ladeiras. Visitar São Francisco é ponto pacífico numa viagem à Califórnia. Não é necessário permanecer muitos dias, mas esteja certo de que vai gastar um bocado de sola de sapato e vai precisar de um certo espírito aventureiro, pois não se sabe quando o próximo terremoto vai sacudir a cidade.

Se seu forte não forem as caminhadas, o que não faltam são meios de transporte pouco comuns. Experimente um passeio de bonde (cable car). O trajeto é feito a 15 km/h, mas é muito divertido. Ainda mais se você for pendurado no balaústre. Em SF, os bondes estão em funcionamento desde 1873 e foram criados por um engenheiro inglês que tinha pena dos cavalos que levavam carruagens ladeira acima.

Há também os street cars — um tipo de bonde com jeito de ônibus. São mais simpáticos que os ônibus convencionais e conservam o estilo art déco. É com eles que se pode chegar ao Castro, onde desde o fim dos anos 60 vive a comunidade gay são-franciscana. São bandeiras de arco-íris por todos os lados, mil cafés e restaurantes, além de lojas de “brinquedos” e “equipamentos” interessantes até para os apenas “simpatizantes”.

Na Marina, mais ao norte, tem-se uma das melhores vistas para a ponte Golden Gate. Quando o fog não atrapalha. Só não esteja por perto em dia de terremoto. O bairro, um dos mais elegantes da cidade, foi construído sobre um aterro e com qualquer abalo chacoalha com vontade. Seguindo pela Marina ao leste, encontra-se o Fisherman’s Wharf, antigo porto da cidade, movimentado pelas distribuidoras de peixe e frutos do mar, mas que hoje não passa de um centro turístico cafona e decadente. Talvez a única coisa autêntica que tenha restado seja o cheiro de peixe.

É do Fisherman’s Wharf, entretanto, que sai a barca para Alcatraz. Conhecida como “A Pedra”, a ilha está a pouco mais de dois quilômetros da cidade, no meio da Baía de São Francisco. Alcatraz foi descoberta em 1775 e recebeu esse nome por causa da grande quantidade de pelicanos (em espanhol, alcatraz) que habitavam a ilha. De 1850 a 1933, a pedra foi ocupada por militares e em 1934 o governo transformou o forte na primeira prisão de segurança máxima do país. Para lá só iam prisioneiros “incorrigíveis”, como o gângster Al Capone.

Em 1963 o então ministro da Justiça Bob Kennedy resolveu fechar as portas de Alcatraz e em 1972 a ilha virou área de recreação nacional. Hoje a pedra recebe mais de um milhão de visitantes por ano. Lá, guardas florestais bem treinados e bem-humorados se encarregam de guiar o passeio pelas instalações. No edifício das celas, cada visitante recebe um aparelhinho de áudio, cuja gravação se encarrega de dar o clima dos anos negros do presídio, com histórias mirabolantes contadas pelos próprios detentos.

Publicado em 27 de abril de 2001.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Entre montanhas e carneiros

de Wellington, Nova Zelândia

Duvido muito que esteja em seus planos uma viagem à Nova Zelândia. Então pense bem e trate de reavaliar seus projetos de férias imediatamente, pois até o turista mais blasé se curva diante da beleza das duas ilhas da Oceania, situadas entre o Mar da Tasmânia e o Oceano Pacífico.


Nesse país descoberto por holandeses e colonizado por britânicos, qualquer montanha é pretexto para saltar amarrado num elástico gigante, o bungee jump. Qualquer corredeira merece um rafting. Entretanto, quem vem apenas em busca de paz, nada com um banho de água cristalina do Pacífico ou um passeio de barco por entre os fiordes do Fiordland National Park.

Para essa turma menos aventureira, há uma Nova Zelândia bucólica e encantadora, de incontáveis pastagens e vinhedos, uma geografia curiosa — resultando numa costa belíssima — com direito a um banho de cultura maori, os indígenas que primeiro migraram para o país, há mais de mil anos.

Planejar uma viagem à Nova Zelândia é simples. Na verdade, fora do alto verão, nem é preciso programar um roteiro com tanta antecedência. Os centros turísticos, eficientes e encontrados até nas menores cidades, tornam mais fácil a busca por um quarto vago em praticamente todos os hotéis e pousadas do país.

Uma boa dica para se conhecer bem o país é alugar um carro e percorrer as principais estradas. Nelas, se vê de tudo. De montanhas permanentemente cobertas de neve a rebanhos de ovelhas pastando à beira do asfalto. Entre uma fazenda e outra, inúmeros vinhedos. Os de Wairarapa estão abertos à visitação com direito a pernoite na própria vinícola.

Na costa norte, as praias de Mount Maunganui merecem uma visita, mesmo que a temperatura não convide a um banho de mar. A região que produz 80% dos kiwis da Nova Zelândia, compreende também algumas das dez melhores praias do país.

Agora, se o seu negócio for explorar culturas ancestrais, você não pode deixar de visitar o Museu Te Papa, em Wellington. Parecido com o Museu de História Natural de Nova York, mistura passado e futuro com interatividade e doses de humor. Passeio perfeito para quem viaja com a garotada.

Na costa oeste, uma longa faixa verde compreende o Fiordland National Park. No meio da floresta, uma única estrada, que leva a Milford
Sound. De lá, saem passeios guiados a pé ou de barco, por entre a floresta ou pela água rodeada de montanhas ainda cobertas por floresta nativa.

Publicado originalmente em 22 de maio de 2003.

De dar frio na barriga

de Queenstown, Nova Zelândia

Bungee jump, rafting, mergulho, montanhismo, balonismo, sky diving, caiaque, caminhadas e passeios de bicicleta pelos caminhos mais tortuosos. Não, não estou me referindo a um campeonato de esportes radicais. Mas o que muita gente procura quando vem à Nova Zelândia é justamente aventura, seja nos cânions dos quais se salta amarrado num elástico gigante, ou nos mais de 8 mil quilômetros de trilhas entrecortando a mata nativa.


São muitas opções para a turma que chega aqui a fim de descobrir a pé as maravilhas das ilhas. Para os iniciados em hiking — ou tramping, como chamam os neozelandeses — e que dispõem de pelo menos dez dias, uma boa dica é atravessar os 125 quilômetros de mata nativa do Northwest Circuit, na Stewart Island, ao sul da Ilha do Sul. Já quem não veio só para caminhar, a Tongariro Crossing é conhecida por oferecer o melhor passeio a pé para se fazer em apenas um dia. Por essa trilha é possível cruzar uma das mais fantásticas paisagens vulcânicas do país. E apesar da atmosfera selvagem dos trampings, aqui os caminhos têm alojamentos bem equipados e toda a infra-estrutura para camping.

Agora, se você tem coração forte e curte uma adrenalina em doses cavalares, não pode deixar de pular das alturas amarrado pelos pés num elástico gigante, o bungee jump. Afinal de contas, foi na Nova Zelândia, mais precisamente em Queenstown, na Ilha do Sul, que surgiu e funciona até hoje o primeiro bungee comercial do mundo, na ponte suspensa sobre o rio Kawarau a 43 metros da água. O maior bungee do país também fica naquela região, mas nesse outro queda é bem mais radical: 134 metros.

Os chegados em atividades aquáticas também vão se dar bem por aqui. Jacques Cousteau classificou a ilha de Poor Knights, ao norte da Ilha do Norte como um dos melhores lugares do mundo para mergulhar. Os passeios de barco e de caiaque também são muito procurados, especialmente na Ilha do Norte, onde as águas do Oceano Pacífico são tão claras que se tem a impressão de que as embarcações não flutuam sobre a água, mas pairam no ar.

Publicado em 19 de junho de 2003.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Descobrindo a metade do mundo

de Quito, Equador

Quando anunciei que deixaria Tóquio rumo ao Equador, Ricardo Miranda, editor de Tablado, lançou-me a seguinte pergunta: “e o que você vai escrever quando estiver na metade do mundo?” Não hesitei em responder que isso não seria problema, embora de segundos depois, até botar os pés na mais antiga capital da América do Sul, senti uma sensação imensa de não ter a menor idéia sobre quais seriam meus assuntos. Índios? Amazônia? Incerteza política? As perspectivas não eram das mais animadoras.


Aqui chegando, no entanto, fui atingida por uma avalanche de novidades e hoje, a dúvida não é sobre “o que escrever”. Mas o que escrever primeiro. O Equador é muito, mas muito mais do que índio e Amazônia. O que, infelizmente pouca gente se aventura a descobrir.

São 12 horas de dia, 12 de escuridão. Todos os dias. Na metade do mundo, o sol nunca muda de posição. Talvez por isso, em Quito tem-se a sensação de que o tempo passa muito mais rápido. De que a luz do sol é muito mais forte. De que as pessoas têm um ritmo muito diferente. Não pelo calor amazônico que aqui não chega graças à altitude de mais de 2.800 metros sobre o nível do mar. Mas por uma certa indolência característica deste lado de cá do mundo. E, ao contrário do que imaginávamos Ricardo e eu, Quito tem muito mais a ser descoberto.

E para quem decide encarar a serra equatoriana, a mais nova atração na cidade é um teleférico, inaugurado em maio de 2005 e que tem atraído milhares de visitantes todos os dias, a maioria nativos, que dificilmente tiveram outra chance de ver a cidade de tão alto. Sobe-se de carro até 2.950 metros, onde há uma estação muito bem organizada, com catracas de cartões magnéticos e mocinhas treinadas para organizar filas que eventualmente serão quilométricas. De lá se pega o bondinho para subir, preferencialmente de costas para o morro, numa preview do que se vai ver lá em cima. O ponto final é a 4 mil metros, mas quem tiver fôlego para caminhar no ar rarefeito pode subir a pé mais algumas centenas de metros. O ar é escasso mesmo, a cabeça pode doer, as carótidas latejam. Mas o esforço vale a pena. Lá do alto se vê o vale e um pedaço do centro histórico tombado pela UNESCO em 78. É uma vista deslumbrante, capaz de emocionar até o quitenho mais indiferente.

Publicado em 19 de agosto de 2005.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Os mistérios da Velha Montanha

de Machu Picchu, Peru

Dizem que há um túnel que liga São Tomé das Letras (MG) a Machu Picchu, no Peru. Mas mesmo depois de muito chá de coca – não para dar barato, mas para ter fôlego suficiente para encarar a altitude e percorrer a cidadela inteira – será difícil constatar que o dito não passa de lenda. Garantido mesmo é encontrar uma das obras arquitetônicas mais fantásticas já construídas sobre a face da Terra e que no século 16 foi abandonada pelos seus fundadores, os incas, não se sabe bem como nem por quê.


Sem conhecer a roda, os incas construíram a “Montanha Velha” (Machu Picchu, na língua indígena quechua), pedra sobre pedra, em plena selva tropical, a 80 quilômetros de Cuzco, então capital do Império Incaico. Bons administradores, preocupavam-se excessivamente com a comunicação e a segurança dos seus povoados. Por isso, Machu Picchu está situada entre montanhas, sendo as principais Machu e Huayna: a velha e a nova, sendo que os pontos mais altos eram estratégicos para a vigilância local.

As casas e templos de Machu Picchu, construídos em torno de uma praça central, são a maior representação da arquitetura inca. As portas em forma de trapézio e as paredes de granito trabalhado, para que se encaixassem perfeitamente umas nas outras, eram cobertas de palha, garantindo espaços com um clima sempre agradável. Entre as construções, degraus gigantes que além de servirem para a produção agrícola, evitavam a erosão.

Mas um dia, a fortaleza tão estrategicamente planejada ficou deserta. Por desconhecer a escrita, os incas pouco ou quase nada deixaram registrado sobre o fim da era indígena na Velha Montanha. Para o explorador norte-americano Hiram Bingham, que descobriu as ruínas de Machu Picchu em 1911, a “Montanha Velha” pode ter sido o último refúgio inca antes da invasão espanhola a Cuzco. Entretanto, uma das teorias responsabiliza a localização da cidadela. Por causa do difícil o acesso ao vale, os incas se viram ilhados e precisaram fugir, antes de serem encurralados pelos europeus.

Publicado em 10 de dezembro de 2005.